Dedicado a promover o acervo fotográfico digital do Instituto Moreira Salles (IMS) e da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), o projeto Brasiliana Fotográfica iniciou suas atividades em 2015 causando rebuliço. Ainda naquele ano, o portal on-line, acessado no endereço brasilianafotografica.bn.gov. br, divulgou uma foto da missa campal em comemoração à abolição da escravatura, realizada no dia 17 de maio de 1888, no Paço Imperial, no Rio. O que não se sabia até então é que a imagem trazia uma surpresa. A editora do portal, Andrea Wanderley, que havia assumido recentemente a função, identificou em meio aos convidados da missa o rosto parcialmente escondido de ninguém menos do que Machado de Assis.

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Foto da missa campal de 1888 e um close no rosto de Machado de Assis — Foto: Reprodução/ Instituto Moreira Salles

A foto ganhou nova vida, já que a presença do maior autor brasileiro no evento era ignorada. Uma peça inédita do quebra-cabeças machadiano se revelava, levando muitos estudiosos a redimensionar o engajamento do escritor na causa abolicionista. Foram tantas visitas ao site para consultar a imagem que o sistema chegou a cair. E o burburinho entre especialistas e leigos ainda levou à identificação de outras figuras históricas na missa, como o abolicionista José do Patrocínio.

Dez anos após a sua criação, a Brasiliana Fotográfica passou de suas 2.400 imagens iniciais para quase 12 mil, ganhando gradualmente o reforço de outras 12 instituições parceiras do IMS e da FBN (como o Arquivo Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro). Seus mais de 500 artigos publicados no site somam 80 milhões de visualizações, ajudando a divulgar o patrimônio visual do país. Para marcar o aniversário, a Biblioteca Nacional, no Centro, vai receber um ciclo de debates que acontece hoje, das 13h30 às 17h10.

— O caso da imagem da missa campal é um exemplo de como a plataforma dá visibilidade incomum para as imagens dos acervos do site e fomenta debates em torno delas — observa Andrea Wanderley. — A difusão desse patrimônio nos ajuda não apenas a valorizar nossa identidade cultural, mas a entender de onde viemos.

A Brasiliana conta com fotografias produzidas entre o século XIX e as quatro primeiras décadas do século XX. Alguns dos eventos mais marcantes desse período são ilustrados por essas imagens — e ganham destaque no portal através de séries temáticas fixas, com textos e artigos. Viajando no tempo, o visitante pode passear pelo Rio de Janeiro de antigamente, examinar as obras dos arquitetos da cidade, conhecer seus velhos cinemas e teatros, acompanhar a trajetória das primeiras feministas do país e descobrir como os foliões se fantasiavam há mais de cem anos. Também pode visualizar cenas da Revolta da Vacina, do famoso carnaval da gripe espanhola em 1919, da derrubada do Morro do Castelo ou ainda do Jardim Zoológico de Vila Isabel, que teria dado origem ao jogo do bicho.

— O nosso universo de leitores é eclético, temos visitantes de todas as origens, idades e formação, e por isso a linguagem não pode servir apenas para especialistas — explica Andrea, que se considera uma espécie de “animadora” do site. — O alcance é enorme. Recentemente escrevi um perfil sobre o fotógrafo Francisco du Boccage (mais importante nome da fotografia pernambucana na virada do século XIX), do qual tínhamos pouquíssima divulgação. Após a publicação, um parente de Boccage nos procurou e nos trouxe diversos documentos sobre ele.

As fotos históricas têm suas próprias histórias. Até chegar ao site, uma imagem passa por vários processos, envolvendo o esforço de bibliotecários, catalogadores, arquivistas, digitalizadores e historiadores.

— Hoje não basta catalogar e preservar, também temos o desafio de construir uma mediação com o grande público, para facilitar o percurso exploratório dos acervos — aponta Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS e curador da Brasiliana Fotográfica. — A curadoria do portal nesses dez anos avançou e construiu algo muito relevante, estimulando um trabalho colaborativo e uma reflexão crítica sobre a própria natureza dos registros. Lidar com a fotografia é lidar com uma linguagem que mudou radicalmente a cultura e a representação visual, testemunhando uma materialidade do mundo.

Panorama do centro do Rio de Janeiro (sem data) — Foto: Reprodução/ Fundação Biblioteca Nacional
Panorama do centro do Rio de Janeiro (sem data) — Foto: Reprodução/ Fundação Biblioteca Nacional

Contornos do Rio: A foto não tem data precisa, mas é posterior a 1904 devido à presença do Palácio Monroe. É um registro panorâmico raro do Morro do Castelo (logo atrás da sede da Biblioteca Nacional), um dos pontos de fundação da cidade, e que seria desmontado em 1922. Passado e modernidade se fundem em um único ponto de vista. “É uma vista que oferece uma percepção única do Morro do Castelo junto a esses objetos arquitetônicos que nasceram das reformas urbanas de Pereira Passos, como o Theatro Municipal”, diz Sergio Burgi, curador da Brasiliana Fotográfica. “É o tipo de legado visual que nos permite uma compreensão imediata de onde a cidade foi fundada e a partir de onde ela se transformou”.

A feminista Bertha Lutz na cidade de Natal em 1928 — Foto: Reprodução/ Arquivo Nacional
A feminista Bertha Lutz na cidade de Natal em 1928 — Foto: Reprodução/ Arquivo Nacional

Mulheres à frente do seu tempo: A foto de 1928 da sufragista Bertha Lutz integra a série “Feministas graças a Deus”, baseada quase que totalmente em fotos do Arquivo Nacional. A fundadora da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino é uma das diversas pioneiras retratadas no portal, incluindo alguns nomes menos conhecidos como Carmen Coutinho e Maria Luísa Bittencourt. “É importante colocar em evidência figuras não tão difundidas fora do meio acadêmico”, diz Andrea Wanderley.

Albert Einstein (ao centro) em visita ao Instituto Oswaldo Cruz — Foto: Reprodução/ Casa de Oswaldo Cruz
Albert Einstein (ao centro) em visita ao Instituto Oswaldo Cruz — Foto: Reprodução/ Casa de Oswaldo Cruz

O cientista: O alemão Albert Einstein (ao centro) visitou o Instituto Oswaldo Cruz em maio de 1925. O registro foi produzido pelo fotógrafo J. Pinto (1884-1951). Em 2021, durante a epidemia do coronavírus, a foto viralizou nas redes sociais com informações erradas, identificando o local como o Instituto Butantã de São Paulo e incluindo o cientista Oswaldo Cruz (que morreu oito anos antes do clique) entre os membros da comitiva. Um artigo do Brasiliana contextualizando a passagem de Einstein pelo Brasil ajudou a difundir as informações corretas para o público.

Augusto Malta fotografou um desfile de corso durante o famoso carnaval de 1919 — Foto: Reprodução/ Instituto Moreira Salles
Augusto Malta fotografou um desfile de corso durante o famoso carnaval de 1919 — Foto: Reprodução/ Instituto Moreira Salles

Carnaval da gripe: Após o luto pela Gripe Espanhola que devastou a sua população, o Rio foi à forra no histórico carnaval de 1919. A folia reuniu 400 mil pessoas nas ruas em um clima de euforia de fim de mundo. Já se escreveu muito sobre o evento, mas registros fotográficos são mais raros. Esta imagem de Augusto Malta, fotógrafo oficial da Prefeitura do Rio entre 1903 e 1936, torna a energia desses dias mais palpável para o público contemporâneo. “Quem não morreu da Espanhola, quem dela pôde escapar não dê mais tratos à bola, toca a rir, toca a brincar… A quadra não é de prantos!”, escreveu o jornalista Manoel Bastos Tigre no Correio da Manhã.

D. Pedro II (ao centro, com a mão no peito) no Palácio Isabel (atual Grão-Pará), em Petrópolis. Foto de Otto Hees — Foto: Reprodução/ Museu Histórico Nacional
D. Pedro II (ao centro, com a mão no peito) no Palácio Isabel (atual Grão-Pará), em Petrópolis. Foto de Otto Hees — Foto: Reprodução/ Museu Histórico Nacional

A “última” do imperador: Produzida em maio de 1889 por Otto Hees, esta foto foi referida como “o último flagrante de parte da Família Imperial no Brasil” pelo jornal A Noite, que a usou em um artigo de 1946. Ainda segundo o periódico, a imagem foi colhida na entrada de uma das alas do Palácio Imperial de Petrópolis. Além do Imperador, aparecem Dona Teresa Cristina, Princesa Isabel, Conde d’Eu e Princesa Leopoldina, entre outros. Sete meses após o registro, Dom Pedro II (ao centro, com a mão no peito) seria deposto e partiria para o exílio com seus familiares.

Presidente da FBN, Marco Lucchesi lembra que a instituição receberá financiamento inédito de R$ 18,8 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para projetos de preservação, digitalização e disponibilização de acervos. O edital inclui a qualificação, atualização das plataformas como a Brasiliana Fotográfica e implementação de novas tecnologias e serviços da FBN.

— Os projetos da FBN exigem demandas de espaço para dados e agora com esse financiamento teremos capacidade de modernizar e agregar valor — diz Lucchesi. — A nossa hemeroteca digital é a segunda plataforma digital governamental mais visitada e, em seguida, vem a Brasiliana Fotográfica. Juntos, trazem uma ordem de grandeza de cem milhões de acesso por ano, um número avassalador.

as imagens da Brasilianas Fotográfica, que completa 10 anos