“Meu nome é Ana Terra Pompeu, tenho 34 anos e sou de Campinas, interior de São Paulo. Vim para a capital em 2014 fazer mestrado e dar início à minha carreira como fonoaudióloga. Comecei trabalhando só com cantores, nessa época mais com o pessoal do rap. Eles estavam em ascensão, então trabalhavam muito e, consequentemente, eu também. Por conta do mestrado, que também era bem puxado, quando somava todas as minhas horas de trabalho e estudo dava mais ou menos 18 por dia, era um ritmo intenso, ainda mais para alguém que veio do interior.

Em 2015, comecei a ter visão dupla, mas só ao final do dia, por volta de 21h, 22h. Eu pensava que todo mundo tinha visão dupla quando estava cansado como eu, com uma rotina tão exaustiva. Eu só via duplicado objetos que estavam longe, então como ficava mais no computador isso não me incomodava tanto. Só que, com o tempo, a visão dupla foi surgindo cada vez mais cedo até ficar insustentável. Eu atendia e via dois clientes.

Fui ficando preocupada e comecei a procurar médicos. Passei por uns seis oftalmologistas e ninguém sabia o que era. Todos falavam que era estresse, que minha carga de trabalho era insana, que eu precisava diminuir. Em 2016, quando terminei o mestrado, consegui reduzir bastante meu tempo de estudo e trabalho por dia.

Mas a minha visão só piorava. Até que chegou a um ponto que comecei a cair, não conseguia andar na rua sozinha. Já caí da escada, fraturei o pé. Até chegar a um momento em 2019 em que eu não conseguia mais fazer praticamente nada sozinha porque todas as imagens que eu via eram duplas.

Eu não tinha convênio, e o SUS era muito concorrido, então usei toda minha reserva que tinha construído desde que cheguei em São Paulo para pagar médicos particulares de referência. Um deles desconfiou que era miastenia gravis (doença autoimune que causa fraqueza muscular progressiva) porque eu relatava cansaço no rosto, muita dor de cabeça. E como eu tinha as quedas, na época associaram a um possível cansaço também nas pernas. Eu estava bem sensível, só queria um diagnóstico para tratar e curar.

Um especialista em miastenia que pediu um exame que teve como resultado uma alteração sugestiva da doença. Com a análise clínica, o médico concluiu que era miastenia e demos início ao tratamento. Em 2019, comecei a tomar corticoides e imunossupressores e fazer uma terapia com imunoglobulina que era administrada no hospital. Eu não chegava a ser internada, mas passava metade do dia lá recebendo a medicação na veia. É um remédio forte e tive todos os efeitos colaterais possíveis, parecia que meu corpo rejeitava tudo.

Fui buscar outras pessoas que tinham miastenia. Queria fazer amizade, saber como elas viviam. Porque se você procura sobre no google, aparecem fotos horríveis, de pessoas debilitadas. Queria encontrar pessoas que estivessem vivendo bem. As que eu encontrava falavam que fizeram a imunoglobulina, que tinha ajudado muito. Mas comigo parecia que eu ia morrer. Nunca desconfiei de que não tinha miastenia, pensava que era azar, que nenhum medicamento funcionava comigo.

Ana Terra Pompeu viveu 5 anos com um diagnóstico errado de miastenia gravis. — Foto: Edilson Dantas / O Globo

Meu médico era referência em miastenia gravis no Brasil. Então fui seguindo o tratamento, acreditando que ia melhorar, só que cada vez eu ficava pior até que fiz uma cirurgia para retirar um órgão saudável chamado timo porque o médico disse que isso enfraqueceria o meu sistema imunológico, o que ajudaria a controlar a miastenia. Passei muito mal durante o procedimento, tive um derrame no pericárdio. Tive alergia aos medicamentos para dor, como morfina, então tive que aguentar a recuperação só com analgésicos simples.

Só que ainda assim a miastenia não melhorava, então tentamos um novo procedimento que se chama plasmaférese. Nele, você é internada, coloca-se um tubo na jugular que drena todo o seu sangue. Depois, ele é devolvido sem o plasma. Cheguei a ter uma convulsão durante o procedimento. Foi bem difícil, a pior coisa que eu já passei, mas ainda acreditava que precisava.

Depois disso tudo, engravidei em 2023 e a visão dupla piorou num nível que meu olho ficou para dentro e não saía de lá. Em nenhum momento do dia eu conseguia ver normal. Vivi uma gravidez que era de alto risco, tive sangramentos semanais porque tomava corticoides e tive um parto complexo porque o anestesista uma dose menor porque, por conta da miastenia, tinha medo de eu ter um efeito rebote e morrer. Era uma cesárea, eu gritava durante o parto.

Depois que minha filha nasceu, continuei com a visão dupla bem forte. Além da parte funcional, isso afetava meu trabalho, minha autoestima e comecei a ficar deprimida. Não conseguia imaginar viver o resto da minha vida com a diplopia, que é a visão dupla. Eu levava essas questões para o meu médico, e ele dizia que eu estava com depressão, me receitava antidepressivos, mas não me ouvia.

Ele fazia os testes e via que eu tinha força nas pernas, nos braços, que eu conseguia fazer atividades físicas, e só tinha mesmo a visão dupla. Dizia que eu tinha um “resto” da miastenia no globo ocular. Parecia que eu estava morrendo em vez de me curando. Eu comecei então a pesquisar sobre miastenia, a frequentar palestras, simpósios, tudo o que eu encontrava de eventos médicos sobre a doença.

Em um deles, um médico falava sobre algumas soluções para pacientes que tinham problemas oculares. Decidi marcar uma consulta, e ele pediu novos exames. Senti que ele ficou meio desconfiado quando relatei minha situação, mas não falou nada. Ao mesmo tempo, busquei uma nova oftalmologista. Ela percebeu que eu estava com um grau extremamente alto de estrabismo e também que eu estava ficando com catarata e prestes a ter glaucoma. Ela disse que daria para consertar o estrabismo com cirurgia, mas que eu iria perder a visão se continuasse com os corticoides.

Eu levei isso para o meu médico antigo e ele respondeu com sarcasmo, desdenhando do meu caso. Na hora, não acreditei, ele sabia que eu ia perder a visão e falou para eu continuar com os remédios. Eu permanecia com ele porque você cria um apego, passa a confiar no profissional que está com você está ali em situações difíceis. Mas depois dessa, foi aquele abraço. Nunca mais voltei nele.

Fui de novo no outro médico que tinha pedido os novos exames. Quando cheguei lá ele disse “olha, acho que você não tem miastenia”. Eu fiquei sem chão, cinco anos acreditando que você tem uma doença crônica, conhecendo pessoas que sofrem com o mesmo problema. Tirei documento de pessoa com deficiência, me envolvi com todo um contexto social de ser PCD. Quando soube que possivelmente eu não tinha miastenia fiquei sem saber quem eu era.

O médico pediu novos exames, pediu para eu refazer outros testes, e tudo indicou que eu de fato não tinha nada. Mas eu continuava vendo duplicado. Nessa hora busquei mais neurologistas e oftalmos que trabalharam juntos e conversaram para tentar entender o que era o meu caso. Finalmente eu me sentia ouvida.

Eles entenderam que, na verdade, o que eu sempre tive foi só estrabismo. Minha fraqueza no rosto era de fazer esforço o tempo todo para unir a imagem duplicada, o que é realmente muito cansativo. Só que os medicamentos da miastenia afetaram a musculatura do meu rosto e pioraram o estrabismo a ponto de só dar para corrigir com cirurgia.

Fiz a operação agora no final de janeiro e me lembro de ir chorando no hospital porque eu estava tão cansada. A operação foi sem anestesia, porque se eu estivesse acordada eu poderia falar com a médica enquanto ela mexia se estava vendo duplicado ou não, então a chance de sucesso seria maior. Depois de passar por tudo que eu passei, pensei “melhor fazer acordada mesmo”.

Ainda estou me recuperando, mas desde então finalmente não tenho mais a visão dupla. Viver vendo duplo é insuportável, agora me sinto invencível. Mas fiquei com algumas sequelas do tratamento desnecessário da miastenia, como a catarata e o início de um glaucoma. E virei uma pessoa corticosensível, não posso mais usar corticoide. Fora as cicatrizes, que tenho muitas dos procedimentos. Ainda assim, a sensação é de alívio.

O que eu sinto é que eu sou uma boa fonoaudióloga porque eu escuto meus pacientes na hora de cuidar deles. E sinto muito não ter sido tratada assim. Me senti abandonada. Mas espero que minha história sirva para que os profissionais da saúde prestem atenção no que os pacientes falam sobre si mesmos. O tratamento precisa ser conjunto”.

* Em depoimento ao repórter Bernardo Yoneshigue

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