Às vésperas de o julgamento da ADPF das Favelas ser retomado no Supremo Tribunal Federal (STF), o ataque a um helicóptero da Polícia Civil em que o copiloto foi baleado na cabeça reacendeu o debate sobre as medidas impostas pela Corte para controlar a letalidade em operações. Em seu voto, em 5 de fevereiro, o ministro Edson Fachin, relator do processo, entendeu que o emprego de helicópteros deve ser limitado a casos de estrita necessidade, justificada em relatórios ao fim de cada ação. O magistrado foi o único a votar até agora. Os outros ministros devem se pronunciar na próxima quarta-feira.
- Internado: Copiloto de helicóptero da Polícia Civil é baleado na cabeça durante ação que mira assaltantes de vans na Vila Aliança
- Aeronave atingida: Helicóptero onde estava copiloto baleado na testa na Vila Aliança foi comprado durante a intervenção federal no Rio, em 2018
Em nota, a Polícia Civil afirmou que a ADPF 365 restringe o poder dos policiais e “motiva” as organizações criminosas. ‘‘O que antes era um equipamento que causava temor aos criminosos, hoje é alvo desses bandidos por meio de armamentos de guerra. Desde o início da ADPF, houve um aumento de mais de 300% dos ataques às aeronaves policiais, o que demonstra que tal decisão passou a ser fator estimulante e encorajador de ataques aos helicópteros”, diz a nota. Acrescentou que “essas restrições trazem enorme insegurança jurídica para os agentes envolvidos, à medida que não há definição clara do conceito jurídico do que é ‘absolutamente excepcional’”.
Helicóptero da Polícia Civil atingido em operação na Vila Aliança sobrevoava área com intenso confronto
A decisão de Fachin reitera, no entanto, que estão em vigor as regras estabelecidas num decreto estadual de 2001, que revogou um dispositivo de 1994 que proibia o uso de aeronaves ‘‘em confronto armado direto’’. Portanto, a polícia não está impedida de empregar helicópteros. Ainda segundo essas normas, as aeronaves também podem ser usadas na observação das áreas onde são realizadas operações; na identificação e no acompanhamento de veículos em deslocamento para evitar a fuga após a prática de crimes; e no transporte e no desembarque de efetivos policiais em posições estratégicas.
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O policial Felipe Marques Monteiro, de 45 anos, está internado em estado gravíssimo no Hospital Miguel Couto (Gávea), onde passou por uma neurocirurgia delicada. Ele foi aprovado no concurso de 2011 para a seleção de quatro pilotos. Felipe, que integra o Serviço Aeropolicial da Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais (Core), foi baleado quando a aeronave blindada dava apoio a uma operação na Vila Aliança, em Bangu, na Zona Oeste, contra uma quadrilha especializada em roubar vans de turismo. Seis suspeitos foram presos.
Na avaliação de policiais ouvidos pelo GLOBO, a bala que atingiu o copiloto passou por um ponto cego da aeronave, que foi periciada nesta quinta-feira no heliponto da Lagoa. Comprado pelo Gabinete de Intervenção Federal, o helicóptero é usado desde 2018 pela Polícia Civil, que hoje tem quatro aeronaves.
Professor de Direito Constitucional da Uerj, o advogado Daniel Sarmento discorda do entendimento da Polícia Civil sobre a interferência da ADPF:
— A ADPF não restringe o uso de aeronaves. A questão é que as polícias não gostam de se submeter a qualquer tipo de controle. As operações continuaram mesmo com a ADPF e, por outro lado, houve uma queda de 60% no índice de letalidade policial.
Para o professor Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF), a justificativa da Polícia Civil não tem respaldo:
— É o próprio estado quem decide quando e como usar os helicópteros. Então, é difícil entender de que forma a ADPF pode restringir o trabalho policial. O que é exigido, como de qualquer servidor público, é que preste contas de suas atividades, neste caso, a operação com o uso dos helicópteros.
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Ex-subcomandante do Batalhão de Operações da PM (Bope), Paulo Storani tem outro ponto de vista.
— Qualquer limitação à ação policial como as impostas pela ADPF dificultam a ação da polícia e facilitam o vazamento da realização de operações — defende.
Por sua vez, o Ministério Público do Rio — a quem cabe a fiscalização da atividade policial — afirmou que “a instituição aguarda o julgamento de quarta-feira e, após a decisão, cumprirá as determinações da corte”. Procurada, a Polícia Civil não esclareceu de que forma a ADPF limita o uso das aeronaves nas operações.
Outro especialista consultado pelo GLOBO, o sociólogo Ignácio Cano diz que a polícia do Rio segue na realidade uma lógica de guerra ao recorrer às aeronaves:
— Em qualquer grande cidade do mundo, helicópteros são usados em apoio à atividade policial, mas não é possível disparar um tiro com precisão deles porque têm pouca estabilidade.
Um levantamento feito pela ONG Redes da Maré mostra que, entre 2019 e 2024, das 95 mortes ocorridas em operações no conjunto de favelas, 62 aconteceram quando havia o emprego de helicópteros. Eliana Sousa, diretora da entidade, aponta ainda que o voo de aeronaves sobre as favelas afeta a saúde mental dos moradores.
— São 15 favelas e cerca de 140 mil habitantes. É uma sensação constante de terror, que causa ansiedade, depressão, angústia. Não tem nada que comprove a eficácia do uso dos helicópteros nas operações, que eles ajudam no combate às organizações criminosas. No entanto, estamos revelando nesse estudo que há mais mortes quando eles são utilizados, e um estado não deve nunca normalizar isso — afirma ela.
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Segundo a TV Globo, a mesma aeronave atingida nesta quinta-feira precisou fazer um pouso forçado em Duque de Caxias, também durante outra incursão policial, no mês passado. A aeronave foi alvo de tiros, e, quando o piloto tentou desviar dos disparos, ela tocou nos fios da rede elétrica, provocando duas explosões.
Em outubro de 2009, três PMs morreram quando o helicóptero que dava apoio a uma operação no Morro dos Macacos foi atingido, caiu e explodiu. Outro episódio aconteceu em novembro de 2016, quando um helicóptero caiu após perder o controle ao dar uma guinada repentina durante uma operação na Cidade de Deus. Quatro soldados da PM que estavam a bordo morreram.
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Num caso mais recente, um helicóptero do Grupamento Aeromóvel, da PM, foi atingido por dois disparos quando dava apoio a uma operação nas favelas do Complexo de Israel, na Zona Norte. Foi preciso fazer um pouso forçado no Comando Naval da Marinha, na Penha, também na Zona Norte. Os policiais que estavam na aeronave não ficaram feridos.
A ADPF 635, chamada de ADPF das Favelas, foi proposta em 2019 pelo PSB. Em 2020, Fachin deu medidas cautelares impondo restrições a operações policiais, que deveriam ser feitas em casos excepcionais e devidamente justificadas.