A tradição boêmia da Lapa vem da primeira metade do século passado — um tempo de cabarés e folclóricos personagens à margem da lei. Nos anos 1990, após décadas de abandono, o bairro carioca virou reduto concorrido de bares e casas de espetáculos. Tornou-se um dos principais destinos turísticos da cidade, mas aquela tal malandragem, a de figuras históricas como Madame Satã (1900-1976), já não existe mais. Hoje, o cartão-postal divide espaço com pontos de venda e consumo de drogas em ruas e becos. O tráfico, em casarões abandonados ou mesmo nas esquinas mais movimentadas da região, tornou-se importante fonte de renda para a facção Comando Vermelho (CV). Esse cenário alterou a rotina do bairro e aumentou a sensação de insegurança.
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Um morador da Lapa, que não quis se identificar, disse que a onda crescente de assaltos já mudou até o horário de funcionamento de bares e restaurantes.
— Tem bares que ficavam abertos até duas ou três horas da manhã, mas agora fecham à meia-noite, justamente para evitar assaltos aos clientes — contou ele.
O tráfico de drogas na região teria se aproveitado da concentração de pessoas em situação de rua para ampliar os locais de venda. Filas diante dos imóveis abandonados onde a comercialização acontece são comuns. No fim da tarde de anteontem, na Rua Joaquim Silva, um homem procurava controlar o movimento, determinando que alguns usuários esperassem do outro lado da rua para não chamar a atenção.
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— As bocas de fumo da Lapa não são pequenas. É possível encontrar locais com filas de 40 a 60 pessoas para comprar droga. Toda essa venda gera um lucro alto para a facção. Não é à toa que, toda vez que a polícia estoura um local, eles logo procurem outro para se instalar — comentou um policial.
Em operação no início do ano, foram apreendidas mais de quatro mil unidades de entorpecentes na região. O material foi avaliado em cerca de R$ 100 mil.
A polícia também investiga se vendedores da Lapa estão pagando taxas ao CV para usar imóveis invadidos pela facção e montar distribuidoras de bebidas e de gelo, além de bares, confecção e salão. Na semana passada, agentes da polícia e da prefeitura estiveram em endereços próximos à Travessa do Mosqueira, a cerca de 200 metros dos Arcos da Lapa e do Circo Voador, para verificar uma eventual relação dos vendedores com o traficante Wilton Carlos Rabello Quintanilha, conhecido como Abelha, e outras irregularidades, como o furto de luz e água, além da ausência de alvará de funcionamento.
As construções invadidas já abrigaram estabelecimentos comerciais históricos como a casa de shows Asa Branca e o antigo restaurante Cosmopolita, fundado em 1926. Durante a fiscalização da polícia e da Secretaria de Ordem Pública, quatro pessoas foram detidas. Aos policiais, funcionários da Light contaram que já foram expulsos do local por traficantes.
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O alvo de uma batida na semana passada fica a menos de um minuto a pé de onde funcionava um bunker do tráfico encontrado por agentes da 5ª DP (Mem de Sá) no fim do mês passado. O local tinha portas de aço, passagem secreta e cômodo isolado com estrutura reforçada. Segundo investigações, os traficantes utilizaram essa saída escondida para escapar de operações anteriores. Portas e a estrutura reforçada foram removidas: o material pesava cerca de 300 quilos.
— A Lapa está abandonada. Não adianta só a polícia fechar as bocas de fumo, porque eles logo encontram outro local. É preciso uma fiscalização mais intensa desses casarões, que, além de servirem como ponto de drogas, ainda oferecem risco físico a moradores e visitantes — afirmou um agente da polícia.
No mês passado, para complicar, a fachada de um casarão desabou na Avenida Mem de Sá, o que provocou preocupação sobre as condições de imóveis históricos na região.
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Além da fiscalização dos locais usados como pontos de venda de drogas, fontes das polícias Civil e Militar apontam a dificuldade para manter traficantes presos como outro desafio no combate ao tráfico. Segundo agentes, muitos criminosos são enquadrados como usuários e não ficam presos. Em dezembro do ano passado, um homem que vendia drogas na Ladeira do Castro, em Santa Teresa, foi detido três vezes em um intervalo de 12 dias. Só na última ocasião ele teve a prisão em flagrante convertida em preventiva. Os policiais também são vigiados por olheiros do tráfico, que tentam evitar que os flagrantes aconteçam.
Investigações apontam que as bocas de fumo da região são divididas entre três traficantes do Comando Vermelho: Wilton Carlos Rabello Quintanilha, o Abelha; Cláudio Augusto dos Santos, o Jiló, gerente do tráfico no Morro dos Prazeres; e Paulo César Baptista de Castro, o Paulinho Fogueteiro, que controla o tráfico nos morros Fallet e Fogueteiro, em Santa Teresa. Os três têm, somados, mais de 25 mandados de prisão em aberto na Justiça e controlam pontos em várias regiões do bairro, incluindo áreas procuradas por turistas, como a Escadaria Selarón, uma das atrações mais visitadas da cidade. Traficantes já foram vistos no local, sentados, oferecendo drogas a quem passa.
A Polícia Militar disse que realiza rondas e abordagens sistematicamente para garantir a segurança na região, com uso de viaturas e motos. A Polícia Civil afirmou que faz ações contínuas para combater o tráfico de drogas e o crime organizado na área. Em nota, a Secretaria de Ordem Pública afirmou que, desde julho de 2022, foram apreendidos 1.014 materiais para uso de entorpecentes. A pasta assegura que realiza diariamente ações de ordenamento urbano, desobstrução de área pública e acolhimento às pessoas em situação de rua, em parceria com a Secretaria de Assistência Social, “especialmente em áreas com grande concentração de usuários de drogas”, diz em nota.
A Secretaria municipal de Assistência Social informou que uma equipe do Consultório na Rua atua diariamente no bairro. De acordo com a pasta, cerca de cem pessoas em situação de rua são assistidas na região. A prefeitura explica que é prestada assistência multidisciplinar em saúde e, quando há concordância da pessoa, é feito o encaminhamento para unidades de acolhimento do Programa Seguir em Frente, responsável pelo Ponto de Apoio na Rua (PAR) e por outras políticas de proteção.

