O português Estácio de Sá comandou suas tropas contra tamoios e franceses para, em 1567, dois anos após fundar a cidade do Rio, consolidar a presença lusitana em terras cariocas. Atingido por uma flecha durante o confronto, acabou morrendo um mês depois. Passados quatro séculos, foi erguido um monumento em sua homenagem no Aterro do Flamengo, hoje retrato de uma triste realidade. No que deveria ser uma sala de exposição, um casal em situação de rua — que desconhece a história da construção — montou um barraco, coberto por lonas e tapumes, onde vive há três anos, segundo eles.
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— Escolhi ficar aqui porque é mais calmo. Mais distante do movimento lá de fora, que é muito perigoso. Lá, o pessoal usa droga, e eu só fumo cigarro. Não tenho vício, graças a Deus. Fico sozinho no meu canto, que é melhor — conta Vitor Hugo dos Reis Ruas, de 40 anos, que admite ter certo medo. — É porque na rua sempre tem perigo.
Casal monta ‘casa’ no Monumento a Estácio de Sá
Com vista para a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar, ponto turístico que nunca visitaram, o espaço de dez metros de comprimento, por cerca de dois metros de largura, e altura suficiente para o casal ficar de pé, está a poucos metros da Avenida Rui Barbosa, um dos endereços mais caros do Rio. Vitor divide o recinto com sua companheira, Andreza Maria da Silva, de 47 anos, que ele conheceu já vivendo nas ruas. Para entrar, eles precisam descer de uma altura de cerca de 1,20 metro.
Enquanto grades sobre a “casa” são usadas como varal, panos servem de cama. Ao lado, restos de galhos viram lenha para fazer comida dentro de uma lata de tinta. Garrafas d’água e caixas de suco ficam ao lado de isopores que guardam quentinhas — com arroz, feijão, salada, carne, frango e carré — e pacotes de alimentos não perecíveis que ganham.
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Natural de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Vitor conta que trabalhava na construção civil. Mas sua vida desandou após uma desilusão amorosa. Depois de separação, ele ainda perdeu o emprego. Hoje, vive da venda de latinhas, que recolhe na Praia de Ipanema, e tem como desafios o “pega para capar”, como define as goteiras em dias de chuva, e driblar agentes públicos que tentam removê-lo do local.
— A Guarda (Municipal) veio ontem. Tive que tirar toda essa tábua daqui de cima, dobrei tudo e coloquei num canto. Eles foram embora e arrumei tudo de novo aqui embaixo — relata Vitor, com os olhos cheios d’água. — Tem uns guardas que conversam na moral, tem outros que te tomam tudo e jogam fora. A gente luta para conseguir de novo: já não temos nada e, o pouco que temos, os caras tomam.
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Enquanto o companheiro é mais calmo, Andreza é agitada. Desconfiada, ela demorou a revelar seu nome. A explicação é o medo que a filha favorita, Larissa, a encontre. Também de Caxias, ela trabalhava com reciclagem antes de ir para a rua.
— Saí de casa porque gosto de ficar assim, viver na natureza, de ver o mar. Quero ter o meu canto, tenho que depender de mim mesma, não quero depender da minha filha — diz Andreza, que trata de um machucado na perna direita após cair na linha férrea.
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Mãe de quatro filhos e avó de dez netos, a mulher conta que o casal não aceita ir para um abrigo da prefeitura porque nesses espaços os dois não podem ficar juntos. Vitor, que tem dois filhos, hoje com 25 e 19 anos, que não vê desde que eram crianças, lembra da última experiência:
— A gente entra 19h e, quando dá 6h30, tem que sair com tudo que é nosso na cabeça: roupa de cama, mochila, nossos pertences. Não tem como caçar um serviço de carteira assinada porque, como vou sair de um abrigo com um montão de coisas e vão me dar um emprego? Tinha que ser assim: a gente entrar, tomar banho, dormir, deixar nossas coisas dobradas e poder ir atrás de um emprego. Lá na lona, no Maracanã, só te dão um negócio para forrar no chão. Não tem nada, não tem alimento. Que abrigo é esse? Isso eu faço aqui: deito, durmo e lavo minha roupa na praia.
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Nessa luta por sobrevivência, ele conta ainda que já foi abordado pela equipe de Assistência Social da prefeitura, mas, segundo Vitor, só perguntam se ele está precisando emitir um documento — os seus, diz, foram roubados. Num posto de saúde no Catete, onde médicos os acompanham, o casal conta que aproveita para tomar banho e ir ao banheiro. Por viverem na rua, eles também não conseguem adotar um cachorro para fazer companhia porque as feiras exigem comprovante de residência.
— Quem vem de fora para, fala, ainda dá atenção. Quem é daqui (do Rio), já volta ou desvia, pensa que a gente vai roubar. Mas tem morador de rua e tem drogado e ladrão, entendeu? A gente é só morador de rua — afirma Vitor.
O Monumento a Estácio de Sá — de autoria do arquiteto Lúcio Costa, o mesmo que projetou a ocupação da Barra da Tijuca e o plano piloto, em Brasília — fica entre Flamengo e Glória. Inaugurada em 1973, a construção em formato de pirâmide tem um de seus vértices apontados para a Urca, onde foi fundada a cidade. O ponto escolhido também é próximo de onde São Sebastião teria aparecido para ajudar os portugueses durante batalha definitiva na conquista da cidade.
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Agora, o obelisco parece estar em manutenção, já que um espaço à sua frente é cercado de tela laranja. Uma porta de bronze, com o brasão de Estácio de Sá e um mapa do Rio impressos em relevo, que levaria para a réplica da lápide do fundador, está fechada. Ontem, agentes do Segurança Presente e técnicos da Rioluz estavam junto ao monumento. Atletas e turistas também são presenças frequentes. Os “inquilinos” da sala de exposição dizem desconhecer a história, mas Vitor contou ter ouvido um guia turístico falar sobre a morte Estácio de Sá por uma flecha:
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— Ah! Escutei uma parte dessa história — lembra.
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O secretário municipal de Conservação, Diego Vaz, informou ao EXTRA que uma tela de proteção e um tapume foram colocados na sala de exposição depois que o monumento foi alvo de vandalismo. Segundo ele, o vidro de uma claraboia que havia ali foi quebrado, e um novo está em processo de compra. Em nota, a Secretaria municipal de Assistência Social (SMAS) informou que faz abordagens de pessoas em situação de rua todos os dias e que sua rede tem 17 unidades de acolhimento, onde casais também são atendidos. Acrescentou que os espaços dispõem de armários e a unidade do Maracanã, citada por Vitor, não existe mais.