No ano passado, a quantidade de brasileiros monitorados por tornozeleiras eletrônicas chegou ao maior patamar desde o início do uso do equipamento, instituído por um decreto presidencial de 2010. Eram, àquela altura, 122 mil presos fora do regime fechado utilizando a ferramenta, um aumento de 67% na comparação com 2020, quando o número já havia crescido exponencialmente em meio à pandemia da Covid-19. A explosão da política, no entanto, não foi acompanhada pela expansão das equipes multidisciplinares que devem acompanhar os casos: há, hoje, apenas 181 profissionais dedicados a essa função, ou um para cada 674 monitorados.
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A presença dessas equipes nas Centrais de Monitoração Eletrônica, modelo desenvolvido pela Secretaria Nacional de Políticas Penitenciárias (Senappen), tornou-se obrigatória ao passar a figurar no Plano Pena Justa, lançado em fevereiro deste ano. Elas são formadas por assistentes sociais, advogados e psicólogos. Em 2023, quando a contratação era apenas uma recomendação, a Senappen havia estimado a necessidade de se empregar 1.548 pessoas para atender 93 mil monitorados.
Passados dois anos e superada a casa dos 120 mil, o total de profissionais até dobrou, mas segue longe do necessário — na mesma matemática, deveria ser cerca de dez vezes maior. Na avaliação de especialistas, essa disparidade, somada à falta de fluxos bem estabelecidos entre Judiciário e Executivo, é um dos principais gargalos que comprometem a efetividade da medida, introduzida no país para reduzir o encarceramento.
— Hoje ainda há um déficit significativo, mas temos uma programação de investimento, de apoio, de reforço aos estados — diz Mayesse Silva Parizi, diretora de Cidadania e Alternativas Penais da Senappen. — Não temos a pretensão de em um ano resolver a lacuna. Mas existe, sim, um planejamento para chegarmos nessa proporcionalidade.
Às equipes multidisciplinares cabe acompanhar e verificar incidentes alertados no uso dos dispositivos, como possíveis violações e ocorrências de esgotamento de bateria. Há casos em que por erro do GPS identifica-se a violação de uma medida, como o impedimento do monitorado de circular por uma determinada área. Outra função dessas equipes é explicar e orientar sobre o uso da tornozeleira, o que tem importância maior em comunidades mais pobres, onde os monitorados tendem a ter menor nível educacional, apontam os especialistas.
— Vamos ter pessoas que não compreendem pois não tiveram a equipe disciplinar. Pela própria atividade, pela sobrevivência, elas vão entrar no mangue, vão para o alto-mar pescar. Aí, já bagunçou o funcionamento do aparelho — frisa Ana Paula Felizardo, que estuda o tema na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Sem essas equipes, casos de violações que poderiam ser descartados por erros do GPS ou por equívoco dos monitorados vão parar na Justiça, contribuindo para a sobrecarga das varas de Execução Penal. Isso, contudo, não significa que eles cheguem rapidamente ao conhecimento do Judiciário — ao contrário, a demora na interface com o Executivo traz por si só outro desafio.
Foi o que aconteceu com Diego Dias Ventura, condenado a 14 anos de prisão por liderar um acampamento bolsonarista no 8 de Janeiro. Em 1º de julho deste ano, ele rompeu a tornozeleira que o monitorava em casa, na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ). No dia seguinte, o aparelho ficou sem energia e desligou. Passou-se mais de um mês para o alerta chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF), que expediu no dia 12 de agosto um mandado de prisão contra Ventura, ainda em aberto. Em nota, a Secretaria de Administração Penitenciária disse que o fato foi “imediatamente comunicado ao Juízo competente”.
Mais recentemente, outro caso de repercussão nacional jogou luz sobre a lentidão desses procedimentos. Preso no início de setembro após deixar uma mala com partes do corpo de uma mulher esquartejada na rodoviária de Porto Alegre, o gaúcho Ricardo Jardim, que já havia sido condenado por assassinar a mãe em 2018, estava solto desde janeiro de 2024. Ele chegou a se apresentar para instalar a tornozeleira como determinado pela Justiça, mas o Instituto Penal de Monitoramento Eletrônico não tinha aparelho disponível.
Dias depois, ele foi convocado para pôr o equipamento, mas não compareceu. Em abril, o Ministério Público solicitou que um mandado de prisão fosse expedido contra Jardim, o que só foi atendido pela Justiça em fevereiro.
— Nós temos um quantitativo de pessoas monitoradas que só cresce, e as equipes não crescem na mesma proporção. No caso do Judiciário, é até possível que um relatório tenha sido enviado, mas até receber, analisar… Há um acervo processual muito grande — destaca Felizardo.
Ela é autora de um relatório feito a pedido da Coordenação Nacional de Monitoração Eletrônica, do Ministério da Justiça, e publicado no fim do ano passado. No documento, são elencadas dificuldades enfrentadas por cada estado na aplicação da política. Em vários faltam equipes e estrutura, como no Acre, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Roraima e Santa Catarina. No Rio Grande do Sul e em Minas Gerais, os problemas estendem-se também ao Judiciário, com ausência de integração interinstitucional e morosidade das varas criminais em aplicar medidas disciplinadoras a quem viola as medidas.
— Não é simplesmente colocando o monitoramento que tudo vai ser resolvido. Exige um acompanhamento que deve ser muito individual — pontua Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor e sociólogo da PUC-RS e pesquisador no Fórum Brasileiro de Segurança Pública. — Não é uma coisa barata. É um outro modelo de controle penal que exige toda uma série de elementos e profissionais para que possa dar resultado.
Sergipe é um dos estados que admitem lidar com falta de pessoal. Documentos do Ministério da Justiça mostram que autoridades locais solicitaram neste ano o repasse de R$ 2 milhões para custear o programa de monitoramento eletrônico. Segundo um email enviado ao Senappen, há dez anos três servidores acompanhavam aproximadamente 150 pessoas. Em junho, o número de monitorados já chegava a 1.650, enquanto o efetivo por plantão “permaneceu, praticamente, o mesmo”.
O estado também é um dos oito que não têm nenhuma central de monitoramento funcionando nos parâmetros recomendados no âmbito do Plano Pena Justa, segundo o primeiro relatório sobre o tema divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em agosto. Bahia, Paraíba, Mato Grosso, Rondônia, Rio Grande do Sul e São Paulo também estão na lista. O relatório aponta ainda que apenas 39 das 161 centrais de todo o país operam em conformidade com o modelo.
Por nota, o governo do Mato Grosso afirmou que a política de monitoramento eletrônico “sempre foi uma prioridade” e que atende “mais de dez mil pessoas por ano, com um custo anual que gira em torno de R$ 20 milhões”.
“Reconhecemos a importância do Modelo de Gestão para Monitoração Eletrônica de Pessoas e entendemos a necessidade de alinhamento com as normativas vigentes. Em 2023, foi iniciada a contratação de uma empresa especializada para fornecer uma equipe multidisciplinar, visando atender aos requisitos do modelo de gestão. No entanto, a empresa rescindiu o contrato em 2024. Atualmente, está em processo de recontratação para uma nova empresa, que garantirá o cumprimento integral das normas estabelecidas. O plano é atender as normativas até o final de 2026, em conformidade com as metas do Plano Pena Justa”, destacou o governo.
Já a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo informou que dispõe de Centro de Controle e Operações Penitenciárias “exclusivamente dedicado ao efetivo controle e acompanhamento do monitorado”, em modelo “diferente do federal”.
“Na SAP, a utilização de tornozeleira eletrônica ocorre para monitoramento de presos do regime semiaberto em ocasiões de estudo e trabalho externos e nas saídas temporárias concedidas pelo Poder Judiciário. O sistema penitenciário de São Paulo ainda conta com 16 Unidades Prisionais exclusivas para cumprimento de pena em regime semiaberto, além de 45 Anexos e Alas destinadas exclusivamente a esse regime, situação que se difere do restante do país”, ressaltou o órgão.
O governo do Rio Grande do Sul destacou que, no estado, “a tornozeleira eletrônica não se restringe às medidas alternativas, sendo aplicada também a indivíduos em cumprimento de pena, o que amplia de forma significativa a demanda”.
“Por isso, embora os números possam sugerir déficit de equipes frente ao modelo do CNJ, refletem justamente a amplitude do uso do monitoramento eletrônico no Estado, que se diferencia ao inovar nessa aplicação. Além disso, o Programa Pena Justa já está em implantação no RS, em trabalho conjunto entre o Poder Judiciário (GMF) e o Poder Executivo, voltado a uniformizar critérios e realizar as adequações necessárias. O Estado conta hoje com nove Centrais de Monitoração Eletrônica (IPMEs), distribuídas nas Regiões Penitenciárias, com 339 servidores de carreira da Polícia Penal, entre agentes penitenciários, administrativos e técnicos superiores — estes últimos formados por advogados, assistentes sociais e psicólogos. Dessa forma, o Rio Grande do Sul é hoje um dos estados com maior número de equipes multidisciplinares dedicadas à monitoração eletrônica. O programa gaúcho de tornozeleiras, já consolidado e constantemente aperfeiçoado, é reconhecido como referência nacional e recebe delegações de outros estados que buscam conhecer e replicar as práticas de excelência da gestão penitenciária gaúcha”, pontuou o governo.
Em Rondônia, a gestão local diz que há “21 polos de acompanhamento no interior, todos em funcionamento e responsáveis pelo monitoramento das pessoas que utilizam tornozeleira eletrônica”.
“O relatório do CNJ aponta a necessidade de adequações para atender integralmente ao modelo nacional, sobretudo no que se refere à equipe técnica multidisciplinar. É importante destacar que esse processo já está em andamento: o Governo do Estado abriu licitação, em fase de edital, justamente para contratar a equipe especializada exigida e concluir a homologação formal das Centrais de Monitoramento. Atualmente, o Estado de Rondônia conta com uma Unidade de Monitoramento Eletrônico (UMESP) em Porto Velho e 21 polos de acompanhamento no interior, todos em funcionamento e responsáveis pelo monitoramento das pessoas que utilizam tornozeleira eletrônica. No momento, na UMESP de Porto Velho e nos 21 polos de acompanhamento, existem Policiais Penais atuando no monitoramento eletrônico. Realizam atividades administrativas de acompanhamento dos monitorados, atividades e fiscalização, análise de ocorrências, recaptura e comunicação aos juízos responsáveis. Com a finalização do certame e a contratação da equipe multidisciplinar, espera-se que Rondônia tenha suas Centrais de Monitoração Eletrônica plenamente adequadas às exigências do CNJ com equipe técnica com formação em áreas específicas, entre eles assistente social, psicólogo, assessor especial (bacharel em Direito) e pedagogo”, informa o o governo do estado.