Com quantas latas se faz um clássico? Não haveria outro contexto possível que não o Rio de Janeiro dos anos 1990 para o surgimento de um álbum como “Da lata” (1995), o terceiro da carreira solo de Fernanda Abreu, a mais carioca das cariocas. Um dos precursores da música pop no Brasil, de estética inovadora, tanto visual quanto sonora, o disco, retrato moderno da “cidade sangue quente” da época, está fazendo 30 anos em 2025. Ganhou documentário — “Da lata 30 anos” —, que estreia hoje no Festival do Rio, livro com mesmo título editado pela Cobogó, com lançamento previsto para 6 de novembro, e relançamento em vinil com venda liberada a partir de 1º de novembro. Ao GLOBO, em entrevista por videochamada, Fernanda Abreu conta como idealizou e participou ativamente de tudo.
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— No réveillon deste ano, eu estava fazendo show num hotel e, bem na hora da virada, me veio isso na cabeça: “Gente, o ‘Da lata’ vai fazer 30 anos!” Eu me lembro, foi tipo na hora do “10, 9, 8….”. Pensei: “Eu quero fazer esse projeto, eu quero fazer um livro, um documentário e um vinil”. E todo mundo me falou: “Impossível você fazer um documentário, tem que ter pelo menos dois anos de antecedência. Para fazer um livro de 152 páginas, você tinha que ter começado seis meses atrás.” Mas eu falei: “Não, gente, eu vou fazer.” E está aí — comemora a artista.
Virginiana obstinada, como ela mesma se pinta, Fernanda tinha um aliado importante: o diretor Paulo Severo, seu amigo. Foi ele, há 30 anos, quem produziu o video-release do álbum “Da lata”. Tinha consigo, portanto, farto material de making of da época. Assim, “Da lata 30 anos — O documentário” tem um tom muito íntimo, pega o espectador pelas mãos e o coloca dentro dos estúdios onde o álbum foi gravado, captando conversas, escolhas, ensaios e toda a aura do batuque-samba-funk, o novo som da praça, que despontava de Fernanda e companhia.
— Eram 40 horas de material bruto guardado comigo todo esse tempo — conta Severo por telefone. — Fernanda achou legal a gente entrevistar todo mundo envolvido na produção, então são 33 entrevistas. Tudo costurado por ela. Ligou para todo mundo, e todos compraram a ideia. E todos muito carinhosos e respeitosos com o trabalho da Fernanda. Todo mundo que conviveu com ela sabe que ela é danada, que sabe o que quer.
“Da lata” era a continuação natural da carreira solo de uma artista que trilhava seu próprio caminho após estrondoso sucesso com a banda Blitz, da qual foi backing vocal. Com o fim do grupo de Evandro Mesquita e companhia, em 1986, Fernanda assinou com a EMI para fazer seus primeiros discos solo. Vieram “SLA Radical Dance Disco Club”, de 1990, e “SLA 2 Be Sample”, de 1992.
Este último trazia o hit “Rio 40 Graus”, hino pop tropical que cunhou, pela caneta de Fausto Fawcett, a expressão “purgatório da beleza e do caos”, tão usada até hoje para falar de Rio de Janeiro. Estes dois primeiros trabalhos já davam uma dica de qual artista Fernanda Abreu estava se tornando. Observadora do seu tempo, da rua, dos bailes funks que ganhavam cada vez mais força, ela também foi precursora no uso do sampler, instrumento musical eletrônico, bem como das novas tecnologias de gravação que permitiam explorar caminhos sonoros modernos para a época. Pronta para um terceiro e novo álbum, a certeza era uma só: Fernanda queria continuar dançando. E apostando no pop numa década ainda dominada pelo rock, sobretudo na primeira metade dos anos 1990.
— O diretor artístico da EMI na época era o Jorge Davison. Ele já conhecia o meu trabalho na Blitz e apostava muito em mim. Fomos Herbert Vianna e eu até ele, levamos uma fita demo com quatro músicas. Ele ouviu e falou: “Não tem mercado no Brasil para isso, mas vamos apostar” — lembra a cantora. — Assim que a Blitz terminou, tive uma enxurrada de convites. Iam me arrumar produtor, repertório, mas eu não queria ser a Fernanda da gravadora. Arrisquei ser esquecida, mas tinha que fazer o meu som. E tinha que ser dançante.
“Da lata” foi gravado entre janeiro e março de 1995 no Rio de Janeiro e em Londres, num trabalho feito pelo círculo íntimo de Fernanda Abreu. Teve concepção visual assinada por Luiz Stein, seu marido na época. Deborah Colker, sua amiga de longa data, fez as coreografias dos clipes e shows. Parceiros como os já citados Fawcett e Herbert Vianna, além de Pedro Luís e Chacal, colaboraram na composição das faixas. “Veneno da lata”, de Fernanda, Vianna e Chacal, foi a primeira a ser feita e ajudou a formar o conceito do álbum.
— O “veneno da lata” tem uma referência ao caso do Solana Star, com a maconha que chegou em latas no Rio em 1987, um episódio surreal, dessas coisas que só acontecem aqui. Mas também tinha a banda Veneno, do Erlon Chaves, que eu sempre adorei. E a lata remete a essa coisa do brasileiro que se vira nos 30, de pegar uma frigideira, um prato e faca, e sair batucando e se virando com o que tem. A gente começou a falar da precariedade do Brasil, da lata, da panela, pensamos no trabalho do Bispo do Rosário, com os mantos, e fizemos vários links. Chegamos nessa ideia de precariedade mas também da criatividade brasileira. E tem a gíria, quando se diz “da lata”, é de melhor qualidade. E a expressão que vem do rádio, de dizer “na lata”, que é dizer sem rodeios.
Ao longo de uma hora e 20 minutos, “Da lata 30 anos”, o doc dirigido por Paulo Severo, detalha, depois de esmiuçar o contexto da época, os pormenores que aconteciam no estúdio durante a produção do disco. Como as diferenças entre os produtores Liminha e Will Mowat (Chico Neves e DJ Memê também colaboraram na produção). Mowat era produtor musical da banda britânica Soul 2 Soul, da qual Fernanda era fã. E foi ele quem, via fax, entrou em contato com João Fortes, empresário da cantora na época, com o interesse de trabalhar com ela. Liminha já havia produzido o disco anterior de Fernanda, “SLA 2”.
— Você tem que administrar os egos, né? Will Moatt veio gravar o disco no Nas Nuvens, que era o estúdio do Liminha, que tava tava dividindo a produção com ele. E tiveram alguns momentos difíceis ali. Eu tentei ao máximo que o Will produzisse as faixas no estúdio em dias diferentes do Liminha. Mas, como o documentário mostra, tem vários momentos em que Liminha e Will estão juntos no estúdio.
Além das tensões, há também muitos registros do bom astral que cercava os colabores do álbum. Como a cena que mostra Herbert Vianna, Lulu Santos, Regina Casé, Paula Toller e Deborah Colker, entre outras figuras, cantando juntos “Brasil é o país do suingue”, sexta faixa do álbum.
— Foi um conjunto de pessoas certas, no tempo certo, no projeto certo. Isso que faz a coisa ser para sempre. Não se seguia uma moda ali. Você sente uma atemporalidade nesse trabalho. Já nasceu assim. Bate diferente, era uma novidade, e era uma novidade boa, dançante, com músicos excelentes. Não tinha como dar errado — diz Severo.
Deborah Colker reforça o coro de que “Da lata” é desses discos que não envelhecem.
— Fernanda ali misturou ritmos, ondas, suingues. Um disco superdançante. Ela é a garota carioca mesmo, porque o Rio tem isso. É o lugar das misturas. Onde linguagens se encontram e viram uma coisa nova. E o “Da lata tem essa força”. Um disco importante das batidas, das levadas, dos encontros. Continua atual — diz Colker, lembrando, ainda, do trabalho como coreógrafa ao lado da amiga. — Eu ficava no pé a pra ela dançar. Sempre que podia, entre os momentos vocais, eu tacava piruetas, passos, movimentos contemporâneos, de outros ritmos, do samba, do funk, do charme. E a gente, com vontade de fazer uma coisa nossa, descobriu no “Da lata” coisas muito autorais.

