Desde 1986, Bruce Springsteen recusou, uma após outra, todas as ofertas que recebeu para fazer filmes sobre sua vida. Até o final de 2023, quando o diretor Scott Cooper sentou-se ao lado do escritor Warren Zanes diante de Springsteen e de Jon Landau, seu empresário e ombro amigo. Zanes é o autor de “Deliver me from nowhere”, livro que narra os meses em que o roqueiro, após o enorme sucesso de “The River” (1980), luta para não ser devorado pela depressão e para manter sua pureza criativa acima das pressões da gravadora — uma batalha artística que ele venceria com o lançamento de “Nebraska” (1982). Cooper escreveu o roteiro enquanto Zanes terminava o livro. E lá estava o quarteto, decidindo se a resistência de Springsteen a um filme biográfico começaria a se desfazer. Ou não.
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Obviamente, se o diretor Scott Cooper e o ator Jeremy Allen White estão agora em Madri promovendo o filme “Springsteen: Salve-me do Desconhecido” — que estreia nos cinemas em 30 de outubro — é porque conseguiram a aprovação dele. “Bruce tinha lido o roteiro e me pediu uma leitura com Landau e Zanes”, recorda Cooper. “E sabe de uma coisa? Eu não fazia ideia do que poderia acontecer. Por sorte, fui ator, e usei aquelas ferramentas na leitura. Também não sei dizer se fiz bem, mas, ao terminar, Bruce se levantou, aplaudiu e disse: ‘Fantástico. Vamos fazer o filme.’”
“O esforço valeu a pena”, disse White, que sentiu a sombra de Springsteen constantemente, com as as visitas do músico às filmagens em diversas ocasiões. “Desde o início, tive claro que, se quisesse representar bem Bruce Springsteen, eu precisava me esquecer do Bruce e da imagem que temos dele e encará-lo como um jovem músico à beira da fama, alguém que atravessa uma depressão e, ao mesmo tempo, decide que o próximo disco será do jeito que ele quiser. Alguém que busca desvendar os medos nascidos de seu passado familiar e, ao mesmo tempo, não quer se perder em seu caminho rumo ao futuro, chegue ou não o sucesso.”
Mas e quanto à presença de Springsteen nas filmagens, como ele lidou com isso?
“Muito bem, porque nos ajudou a verificar inúmeros detalhes que, por mais bem documentados que estivéssemos, só ele poderia esclarecer. Por exemplo, ele gravou as músicas de “Nebraska” no quarto. Tocava sentado na cama? No chão? Mas é verdade que, no começo, pensei que ele vinha nos julgar, e logo percebi que, na verdade, o que ele queria era nos apoiar. Pelo menos, foi assim que eu vivi isso.”
Cooper acrescenta que Springsteen lhes confessou que a canção que considera mais difícil de interpretar é “Born in the U.S.A”: “Ele nos disse que, quando a coloca no set list, sabe que precisa começar a se preparar já na música anterior. Que só dá para encará-la se você realmente acreditar nela. É uma música que exige um esforço extra.”
O incrível não é que Springsteen tenha conseguido lançar um disco tão sombrio quanto “Nebraska”, contra tudo e contra todos, mas que, ao mesmo tempo, tenha composto algumas das grandes músicas que depois reuniria em “Born in the U.S.A”, como “I’m On Fire” ou a que daria título ao álbum de 1984 — e ainda assim tenha decidido não incluí-las em um disco doloroso, obscuro, que mergulha nas entranhas dos males dos Estados Unidos e do ser humano, totalmente despido de adornos orquestrais. Em “Nebraska”, ouve-se apenas Springsteen.
“Eu só consigo ver nisso honestidade e verdade”, diz o ator. “Como agora, quando ele fala sobre Trump enquanto o resto das pessoas fica nervosa.”
No filme, nunca houve limites impostos por Springsteen. Mas e quanto a eles?
“Como artista, quis ser fiel a Bruce”, observa Allen. “No começo, o peso da lenda me sobrecarregou. Depois, entendi que não poderia agradar a todos.”
Cooper acrescenta uma anedota, que se percebe refletida na relação mostrada em tela entre Landau (interpretado por Jeremy Strong) e Springsteen: “Jon me perguntou se eu tinha consciência de que Bruce controla tudo — a ordem em que as músicas aparecem em um álbum ou em um show, as capas dos discos, suas aparições… Porque, durante meio século, ele esteve no comando, decidindo cada passo. E que este seria o primeiro produto relacionado a ele que não iria controlar. Ufa. Então me concentrei em encontrar o tom certo, em não trair uma ideia. ‘Nebraska’ foi feito de forma minimalista e, portanto, um filme sobre aquele período precisava seguir essa mesma diretriz, sem buscar ser espetacular.”
Se houve um músico que lutou para não ser sacralizado, esse foi Springsteen. Por isso, tentar desmitificá-lo na tela — alguém que já chega desacralizado de casa — não foi a carta usada por Cooper (responsável por “Coração rebelde”, “Tudo por justiça” e “Hostis”). Seria inútil.
“O normal é propor cinebiografias que oscilam entre despir o ser humano e tocar seus grandes sucessos um após o outro, como se colocássemos moedas em uma jukebox”, dizo cineasta. “Nós recusamos isso. Muitas vezes se espera que um músico busque ainda mais fama. E Bruce teve a coragem de olhar para dentro e rejeitá-la, optando pelo caminho mais inesperado. Em vez de continuar construindo sua iconografia, seu mito, ele fez o contrário e se expôs emocionalmente. Então seguimos sua liderança: espero que o público veja um ser humano próximo e imperfeito, em vez do ícone.”
Ainda assim, por seu gênero, “Springsteen: Salve-me do desconhecido” é mais um dentro da imensa onda de cinebiografias musicais lançadas nos últimos anos. Por que essa moda? Allen responde: “Não sei bem por quê, além do fato de que realmente existe um público para esses filmes. Para mim, sempre é muito útil quando eles se concentram apenas em um período específico da vida do artista. Além disso, no nosso caso, é o período mais importante da vida dele e o álbum do qual ele mais se orgulha. Espero que as pessoas assistam como se estivessem em casa, ao lado dele, e que se deixem levar pelo rio que é Bruce.”
Ao seu lado, a estrela da série *The Bear*, bem mais contido nas palavras, apenas sorri. White entrou no projeto mais tarde e construiu sua interpretação sem maquiagens nem artifícios — e muito menos imitações. Exceto nas canções, que o ator enfrentou após meses de aulas com professores de canto, alcançando uma versão muito fiel à voz do artista no início dos anos 1980.