A bioeconomia cresce no país e movimenta bilhões na Amazônia, onde a riqueza gerada é pulverizada entre milhares de empreendedores. São os pequenos negócios que lideram a transformação local por meio de atividades econômicas sustentáveis, gerando emprego e renda sem abrir mão da proteção da floresta. Por sua importância na redução da desigualdade social e na conservação ambiental, o Brasil quer o assunto em evidência na COP30, em novembro. O plano do governo é ter em Belém uma vitrine com projetos que valorizam recursos naturais e extrapolam mercados locais para convocar outras nações a apoiar e investir em possíveis negócios promissores.
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— Não tenho dúvidas de que a bioeconomia será a conectora dos temas da COP, vai ter uma importância central — diz Marcelo Behar, coordenador do Fórum de Governança Climática e Desenvolvimento da FGV Direito SP e enviado especial de bioeconomia para a COP30 pelo presidente da conferência, embaixador André Corrêa do Lago. — Desde 1992, temos um compromisso climático muito forte, e o mundo quer saber o que estamos fazendo para manter a floresta de pé.
O advogado explica que serão trabalhadas cinco frentes em Belém: florestas, sociobioeconomia, agricultura, biotecnologia e financiamento climático para a bioeconomia. Nesse último campo, ele cita articulações em curso para associar preservação de ecossistemas e geração de renda para quem vive neles. Uma das apostas é o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), para o qual o presidente Lula prometeu o primeiro aporte de US$ 1 bilhão durante a Semana do Clima, em Nova York, no mês passado. Outra é o Earth Investment Engine, iniciativa colaborativa na qual Behar está diretamente envolvido e que pretende angariar US$ 20 bilhões para bioeconomia e agricultura regenerativa.
Para o Brasil, a expectativa é levantar recursos que possam reforçar a cadeia produtiva da bioeconomia, envolvendo extrativistas, ribeirinhos, pescadores, comunidades tradicionais. A conferência em Belém será o momento certo para jogar luz sobre os “empreendedores da floresta”, que criam negócios e empregos a partir do uso sustentável de recursos da natureza, defende Décio Lima, presidente do Sebrae:
— A COP30 não pode ser apenas um palco para grandes corporações e governos, precisa ser um espaço para que pequenas empresas compartilhem suas experiências e soluções. É crucial que a voz delas, verdadeiros motores da bioeconomia e da conservação, seja amplificada e ouvida. Esses empreendimentos demonstram, na prática, que a floresta em pé é um ativo valiosíssimo, capaz de gerar renda, empregos e bem-estar para as comunidades locais.
O PIB da bioeconomia gira em torno de R$ 12 bilhões na Amazônia, diz estudo do WRI Brasil. Com mais investimentos, pode atingir R$ 38,6 bilhões em 2050 e criar 833 mil empregos. Segundo Lima, o Sebrae tem “capilaridade” para articular parcerias para impulsionar negócios sustentáveis, oferecendo formalização, treinamento e conexão com novos mercados. Ele informou que o Inova Amazônia, programa da entidade de fomento à bioeconomia, já apoiou 409 empresas e 660 ideias inovadoras, resultando em mais de 880 projetos, nos nove estados da Amazônia Legal.
O BNDES é outro forte incentivador do setor no país, diz Nabil Kadri, superintendente da Área de Meio Ambiente do banco:
— O BNDES acredita que a valorização da biodiversidade brasileira é um caminho do desenvolvimento. E, para isso, tentamos alinhar diferentes instrumentos financeiros.
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Um deles é o Fundo Amazônia, gerido pelo BNDES e que acaba de completar 17 anos. Constituído por doações de governos estrangeiros, bancos multilaterais, organizações e empresas, ele destina recursos não reembolsáveis ao crescimento de negócios sustentáveis e à restauração da floresta.
Segundo Kadri, desde 2023, o programa aprovou 17 iniciativas que “se desdobraram” em cerca de 50 subprojetos na Região Norte, num total de R$ 930 milhões em investimentos. É recurso que chega, por exemplo, para fortalecer a cadeia de produtores do babaçu, do pirarucu, dos alimentos orgânicos ou apoiar a recuperação da vegetação. Na outra ponta, em dois anos, o Fundo Amazônia conseguiu, em promessas de novas doações, algo próximo de R$ 2,1 bilhões.
Confira a seguir quatro histórias inspiradoras de empreendedores da bioeconomia amazônica.
Queijaria acumula trinta medalhas: da Amazônia para a França, queijo maturado com café une memória afetiva e ousadia
O Amazonas é mais que açaí e castanha. Em Autazes, a cerca de 100 quilômetros de Manaus, a Queijaria D’Lourdes, coleciona mais de 30 medalhas em concursos nacionais e internacionais. Em setembro, o ouro veio da França para seu novo produto: o queijo maturado com café. A receita levou 11 meses para ficar no ponto e mistura memória afetiva com estratégia comercial.
— Minha avó cultivava café e só colhia os grãos maduros. Eu tinha uns 9 anos e a ajudava. Era o cafezinho dela — conta Arleane Figueiredo, que toca o negócio com um irmão e foi buscar em Dona Lourdes a inspiração para o queijo e o nome da empresa. — Quando vamos aos eventos, as pessoas não sabem que se produz queijo no Amazonas. Ficam surpresas. Somos pioneiros. Ousamos maturar porque exportar queijo fresco é complicado. Assim temos mais tempo de prateleira.
A propriedade da família na Comunidade do Novo Céu, na zona rural de Autazes, cria vacas e búfalas que dão o leite para os 17 produtos da queijaria, cujos carros-chefes são queijo coalho, de búfala e ricota. A empresa inova sem perder a identidade amazonense. Os queijos com tucumã, castanhas e geleia mostram isso e engajam outros produtores. A D’Lourdes produz 130 quilos de queijo por dia e doa o soro residual do coalho para alimentar criações de porcos.
Em 2024, o queijo de Autazes recebeu o selo de indicação geográfica do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), fortalecendo toda a cadeia produtiva local. Arleane quer atingir novos mercados, mas precisa de escala. Busca financiamento para uma câmara fria para armazenar queijos e melhoria genética das vacas e búfalas para aumentar a produção de leite.
— Estou tentando crédito, mas tem toda uma parte burocrática. É difícil na Amazônia.
Barro do fundo do rio vira cerâmica: parte da cultura de povos originários, produção artesanal de peças no PA se adapta ao mercado
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Maynara Santana é da terceira geração de uma família que esculpe peças em cerâmica há mais de 50 anos em Icoaraci, distrito de Belém conhecido pelas olarias e ateliês. A Cerâmica Família Sant’ana reúne dez parentes, incluindo os pais de Maynara, mas envolve ainda outras pessoas nas etapas da produção.
O processo é totalmente artesanal, a começar pelo barro retirado dos rios para fazer vasos, pratinhos, cuias e copos inspirados nas culturas marajoara e tapajônica, fortes no Pará. Grafismos e desenhos de animais carregam a identidade de povos originários.
A matéria-prima é coletada pelos “boleiros” do fundo dos rios de Santo Antônio do Tauá, a três horas de Icoaraci.
— É na força humana mesmo. Eles usam pá e enxada para chegar à argila limpa, que fica no terceiro nível, mais no fundo. Depois, botamos de volta na água a terra que não usamos. Então, o impacto é menor — diz a artesã. —Precisamos fazer um uso consciente da matéria-prima.
Após a modelagem, um forno à lenha queima cem peças a cada fornada. A impermeabilização da cerâmica vem de uma solução bem amazônica, a semente de inajá, uma palmeira oleaginosa. Muito lisos, os grãos vão fechando os “poros” da argila friccionados contra a peça. O trabalho começou com a avó paterna de Maynara, na década de 1970. Ao longo dos anos, vasos altos que decoravam varandas deram lugar a itens menores, que têm maior demanda.
— Nossas peças cabem nas malas — diz a jovem, que vai expor em Belém na COP30 e espera vender muitas para os participantes da conferência.
A embalagens são feitas de folhas do miriti, planta nativa da região, por um artesão vizinho, reforçando a importância de uma produção sustentável que valoriza toda uma cadeia de produtores locais.
Bloco dá um fim nobre ao plástico: empreendedor chega a uma fórmula para adicionar resíduos de embalagens em concreto
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Quando viu uma palestra sobre resíduos sólidos, em 2014, numa universidade do Tocantins, o então educador Alex Macedo ouviu que não havia solução para lixo plástico. Sentiu-se desafiado. Resolveu criar um negócio que desse fim nobre a tampinhas, garrafas PET, embalagens, sacolas de supermercado e outros itens plásticos que acabam se acumulando na natureza.
Foram mais de 5 mil testes em laboratório até chegar à “receita” ideal para usar resíduo plástico moído em blocos de concreto ecológico ou sustentável, como define Macedo. Ele criou a Polinorte Sustentáveis há três anos em Araguaína (TO), que oferece soluções ecológicas para construção. Seu material é usado em pisos industriais, calçadas e casas populares. Seu bloco tem areia e pedra na composição, mas a maior parte (60%) é plástico que vem de associações de catadores, prefeituras, escolas e moradores.
— Temos clientes em Tocantins, Pará, Maranhão e estamos chegando a Boa Vista (RR) para construir moradias populares para venezuelanos — diz Macedo, que tem uma rede de fornecedores na região e promove oficinas de educação ambiental em escolas. — É possível empreender com materiais recicláveis e empregar muita gente. Tem o pedreiro, o ajudante, as associações que fazem a triagem do resíduo. Limpamos a cidade e tiramos os atravessadores.
O empreendedor diz que o bloco de concreto polui muito menos e dura quase três vezes mais que o tradicional porque a fibra plástica não se rompe. Forma uma barreira muito resistente à água e à umidade.
— Queremos chegar a mais municípios para que as pessoas vejam que é possível solucionar o plástico. Gera economia, emprego, sustentabilidade para o país e ajuda a acabar com os lixões. Não é só dinheiro. É transformar as cidades.
Cosméticos usam artigos típicos: linha de produtos de perfumaria paraense vai do xampu ao pós-barba com inspiração regional
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Fugindo da Primeira Guerra Mundial, o farmacêutico italiano Francisco Filizzola desembarcou no Pará em 1914 com conhecimentos de botânica e se encantou com a biodiversidade da Amazônia. Começou uma pequena fábrica de cosméticos naturais à base de artigos típicos da região, como castanha-do-pará, óleo de andiroba, mel e própolis. Hoje, quem toca a Juruá Cosméticos é a farmacêutica Dâmaris Busman, bisneta dele. O nome da empresa homenageia um rio amazônico.
O italiano desenvolveu sabonetes, cremes e loções com óleos vegetais, ervas e raízes aromáticas que tirava da mata. Presenteava amigos e, ao longo dos anos, foi registrando receitas dos produtos em italiano num caderno de “mil folhas”, conta Dâmaris. Só nos anos 1970 uma das três filhas do pioneiro recuperou as anotações para ampliar o portfólio e a produção da firma.
A Juruá hoje fabrica xampu, condicionador, hidratante, cremes faciais e loções pós-barba. Até as embalagens vêm da natureza. As cestinhas dos kits são de cerâmica ou madeira do ouriço da castanha, feitas por artesãos do Pará. Extrativistas retiram da floresta raízes de patchuli usadas nas colônias e óleos vegetais.
— São cadeias como esta que sustentam a bioeconomia. Ficamos felizes de ajudar comunidades. Não queremos só exportar matéria-prima. Queremos produtos amazônicos acabados, com segurança e eficácia. Exportar os produtos e isso não vir como benefício aos povos da floresta é muito triste — diz Dâmaris, que cita o óleo de pracaxi, cicatrizante e hidratante: — Os ribeirinhos vendem para as grandes empresas e, quando a gente precisa comprar deles, não tem. Já tive de encomendar óleo (já beneficiado pela indústria) em São Paulo. Riquezas daqui têm que gerar benefício para as pessoas aqui.