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É o chamado “turismo fora da caixinha”: uma proposta que rompe com a rota tradicional da Zona Sul e aposta em narrativas comunitárias, ancestrais e plurais. E hoje, às 10h30, esse novo mapa afetivo da cidade ganha forma em mais uma edição da Rota do Samba, roteiro guiado por locais históricos e culturais de Oswaldo Cruz.

O projeto tem curadoria da arquiteta e guia de turismo Karolynne Duarte, fundadora do coletivo Guiadas Urbanas, em parceria com o sambista e curador Marquinhos de Oswaldo Cruz. Lançado em dezembro de 2024, o trajeto — que tem várias edições ao longo do ano — propõe uma imersão na história, na cultura e na ancestralidade do samba, com paradas em locais emblemáticos e encerramento (opcional e pago) na tradicional Feijoada da Portela. A quadra da escola, ponto final do roteiro e hoje, ganhou um mural em homenagem a Paulo da Portela, assinado pelo coletivo Negro Muro. Além do roteiro, a experiência é enriquecida com QR Codes, playlists, realidade aumentada e textos informativos.

Marquinhos de Oswaldo Cruz e Karolynne Duarte assinam a Rota do Samba — Foto: Guito Moreto

De acordo com Marcelo Freixo, presidente da Embratur, a iniciativa é fruto de escuta ativa de quem vive e faz a cultura local. Para ele, ampliar o olhar para territórios como a Zona Norte é fundamental para democratizar o turismo no país.

— Isso significa reconhecer que o Brasil real é múltiplo, potente e pulsante também fora dos cartões-postais. Essas regiões guardam histórias fundadoras da identidade brasileira, como o samba, a ancestralidade africana, o associativismo popular, e são também espaços de grande criatividade contemporânea. O turismo, quando bem orientado, tem capacidade de descentralizar a economia, redistribuir oportunidades e valorizar identidades historicamente marginalizadas. A Zona Norte do Rio, nesse contexto, não é apenas um destino alternativo, mas um patrimônio a ser protegido, contado e vivido — avalia.

A Rota do Samba já integra a estratégia internacional da Embratur e vem sendo apresentada em eventos, feiras e press trips.

— Recebemos jornalistas estrangeiros, influenciadores e operadores de turismo que, ao visitarem o roteiro, tornam-se multiplicadores dessa experiência — diz Freixo.

O presidente da Portela, Junior Escafura, na parada final da rota — Foto: Divulgação
O presidente da Portela, Junior Escafura, na parada final da rota — Foto: Divulgação

Criado em 2012, o Guiadas Urbanas é um projeto de turismo sociocultural com foco em territórios periféricos e afrorreferenciados. A ideia é inverter a lógica turística centrada na Zona Sul e revelar os bairros do subúrbio como patrimônios vivos. A criação da Rota do Samba é uma das principais ações do coletivo — resultado da articulação entre a trajetória de Karolynne e o movimento iniciado por Marquinhos de Oswaldo Cruz.

— O projeto surgiu da minha vontade de usar o turismo como ferramenta de valorização dos espaços e da cultura do subúrbio carioca — explica Karolynne. — Queria transformar a imagem de um território marcado pela violência e mostrar toda a potência cultural e histórica que ele carrega.

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O ponto de encontro é o busto de Oswaldo Cruz, na Rua João Vicente 625. Entre os destaques do trajeto estão Casa do Candeia, Estação de Trem Oswaldo Cruz, Circo São Jorge, Quintal da Tia Doca, Casa da Dona Esther, Batismo da Portela, Portelinha, Praça Paulo da Portela, Feira das Yabás, Bar do Nozinho e, por fim, a quadra da Portela.

— A rota conta histórias, mas também desperta senso crítico. Mostra o que temos, mas também o que estamos perdendo — pontua Karolynne. — A casa de Paulo da Portela, por exemplo, está em ruínas. É preciso olhar para isso.

Freixo, da Embratur (de branco, à esquerda), Karolynne (de amarelo) e Marquinhos (ao microfone) em Oswaldo Cruz — Foto: Divulgação
Freixo, da Embratur (de branco, à esquerda), Karolynne (de amarelo) e Marquinhos (ao microfone) em Oswaldo Cruz — Foto: Divulgação

Além de resgatar trajetos simbólicos, a Rota do Samba revela memórias e curiosidades pouco conhecidas.

— Muita gente pensa que o nome Portela veio antes de Paulo da Portela, mas é o contrário — conta Karolynne. — Havia dois Paulos no mesmo vagão onde rolava o samba do trem: um de Bento Ribeiro e outro que morava na Estrada do Portela, uma antiga via que levava à fazenda da família Portela. Para diferenciá-los, diziam: “Lá vai o Paulo da Portela”. O apelido pegou. Só depois, em 1935, é que a escola, então chamada Vai Como Pode, passou a se chamar oficialmente Portela, após um delegado questionar onde ficava a agremiação e considerar que Vai Como Pode não era nome apropriado para uma escola de samba.

Outro ponto de parada é a casa de Dona Esther, figura importante do bairro e do carnaval carioca. Foi com a licença do seu bloco, Quem Fala de Nós Come Mosca, que Paulo da Portela, Antônio Rufino e Antônio Caetano conseguiram desfilar legalmente pela primeira vez. Durante o passeio, quem dá vida à memória é Seu Mirinho, sobrinho de Dona Esther, que costuma receber os visitantes com relatos emocionantes.

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Um dos trechos mais curiosos do roteiro é o local onde ficava a lendária “jaqueira da Portela” — ou, talvez, uma mangueira:

— A roda de samba acontecia sob uma árvore que, para uns, era uma mangueira; para outros, uma jaqueira. Como a Mangueira já existia como escola, talvez tenha sido mais interessante dizer que era uma jaqueira — brinca Karolynne. — Mas fico pensando no risco que era tocar ali. Cair uma manga já dói, mas uma jaca… E foi ali mesmo, onde ficava essa árvore, que se ergueu o “Maracanã do Samba”: a Portelinha, segunda sede da escola, hoje lar da Velha Guarda da Portela. Essa história, inclusive, inspirou Zé Keti a compor o samba “Jaqueira da Portela”, eternizado na voz de Paulinho da Viola.

A Feira das Yabás é realizado mensalmente — Foto: Divulgação
A Feira das Yabás é realizado mensalmente — Foto: Divulgação

No Quintal da Tia Doca, o passeio revela um verdadeiro berço de bambas. Foi ali que nomes como Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra e Dudu Nobre deram os primeiros passos no samba.

— Era um centro cultural espontâneo, um viveiro de talentos — diz Karolynne. — A Jovelina, por exemplo, gravou “Orgulho negro”, composta por Tia Doca. Ela foi uma força feminina no pagode e no partido alto, uma referência de resistência e de empreendedorismo feminino quando ainda nem se falava disso.

A visita também resgata um episódio pouco conhecido da cultura brasileira: o encontro entre Paulo da Portela e Walt Disney. Em 1942, durante a política da boa vizinhança, o criador do Mickey esteve no Brasil em busca de referências culturais. A história conta que Paulo o levou à quadra da escola, onde hoje funciona o Bar do Nozinho. O encontro, segundo relatos, teria influenciado a criação de Zé Carioca, símbolo da malandragem com elegância.

— Paulo da Portela era um elo entre dois mundos: o Centro da cidade e os arrabaldes suburbanos. De um lado, a cidade, com seus sambistas de terno e gravata, muitos talentosos, mas que vendiam seus sambas e não ganhavam a fama. Do outro, os quintais de terra batida, onde o samba acontecia nas casas das famílias. Paulo unia esses universos. Ligava os bambas do Estácio aos de Oswaldo Cruz. Isso moldou o eixo do samba entre os anos 1920 e 1940 — conta Karolynne, que destaca a importância do apoio da Embratur. — Ele tem sido fundamental para ampliar a visibilidade desse tipo de turismo. Antes, a procura era pequena, restrita a quem já conhecia nosso trabalho. Agora, com o fortalecimento da divulgação, até hotéis passam a incluir o roteiro como uma opção para seus hóspedes.

A arquiteta e guia de turismo Karolynne Duarte e Seu Mirinho, sobrinho de Dona Esther, durante a Rota de Samba — Foto: Divulgação
A arquiteta e guia de turismo Karolynne Duarte e Seu Mirinho, sobrinho de Dona Esther, durante a Rota de Samba — Foto: Divulgação

A iniciativa tem raízes antigas. Nos anos 1990, Marquinhos de Oswaldo Cruz foi um dos fundadores do movimento “Acorda, Oswaldo Cruz”, que misturava samba, memória, ativismo cultural e amor pelo bairro.

— Nasce muito da minha indignação de ver a Grande Madureira, tão importante para quem foi criado ali, se deteriorando — lembra. — Enquanto o eixo cultural da cidade seguia do Centro para a Zona Sul, a Zona Norte parecia nem existir.

Para ele, o amor pela Portela e o convívio com a Velha Guarda da escola foram a faísca. Na juventude, trabalhava na loja do pai e por ali passavam figuras históricas como Manacéa, autor de “Quantas lágrimas”, e Argemiro Patrocínio, compositor de “A chuva cai”.

— O Argemiro era muito meu amigo, chegava a me “roubar” da loja pra eu tocar cavaquinho com ele — relembra Marquinhos. — Já o seu Manacéa me ensinava com uma paciência imensa. Aquilo era uma escola. Eu ficava pensando que, se tirassem a estação do trem, o bairro morreria.

Foi nesse ambiente de efervescência cultural e ativismo local que nasceu o movimento “Acorda, Oswaldo Cruz”. Reunia sambistas, ativistas de associação de moradores, roqueiros, defensores da MPB e muitos apaixonados pela cultura popular. Cada grupo trazia uma vertente, e o samba virou elo.

— A minha intenção sempre foi musical. Mas o mais bonito dessa história é que todo mundo se somou. E hoje ver tanta gente com orgulho de ser suburbano é o maior barato — diz Marquinhos.

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A força do samba nos trilhos não é novidade. Desde os tempos de Paulo da Portela, sambistas da região embarcavam no trem que saía da Central do Brasil rumo a Oswaldo Cruz, improvisando rodas de samba nos vagões como forma de driblar a repressão policial. Inspirado por esse movimento ancestral, o Trem do Samba foi criado em 1996 por Marquinhos de Oswaldo Cruz e transformou a viagem em uma celebração da cultura suburbana. Realizado anualmente no Dia Nacional do Samba, o evento lota os vagões com músicos e foliões que fazem das composições clássicas a trilha sonora do trajeto. Ao desembarcar, o público segue pelas ruas do bairro em cortejos, rodas de samba e homenagens a grandes nomes do gênero.

— Todo mundo debochava no início. Diziam que era maluquice minha — lembra Marquinhos. — Mas o Trem do Samba virou um símbolo de pertencimento, orgulho e resistência.

Além dele, a Feira das Yabás, realizada mensalmente na Praça Paulo da Portela, também é criação de Marquinhos. Nela, matriarcas portelenses servem pratos da culinária afro-brasileira ao som de samba de raiz.

— Vejo Oswaldo Cruz como um museu a céu aberto — define. — Precisamos levar essa história para as escolas, para que nossas crianças saibam quem foram Paulo da Portela, Candeia, Tia Doca.

Outro nome que contribuiu para preservar essa memória foi o professor Rogério Rodrigues, ex-diretor cultural da Portela, que em 2003 idealizou o Perímetro Cultural de Oswaldo Cruz, aprovado pela Câmara em 2019.

— Fui morador de Oswaldo Cruz, no lado oposto à linha férrea da Portela. Minha memória afetiva inclui os blocos de carnaval e as caminhadas da escola até Madureira. Quem encerrava era a Portela na terça-feira gorda, fechando a folia. A escola e grande público caminhavam pela Rua Carolina Machado até Madureira para desfilar depois do Império Serrano — lembra. — Meu olhar mais atento sobre o território-berço da Portela e seus personagens veio com o grupo PortelaWeb, criado por portelenses para preservar e divulgar a história e a memória da escola. Visitamos locais como a casa de Paulo da Portela, já bastante deteriorada. Queríamos preservar e repensar o futuro.

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Apesar da conquista da lei, Rodrigues aponta entraves para sua implementação e defende mais participação da comunidade nas novas iniciativas:

— É essencial ouvir quem vive aqui, músicos, comerciantes, guardiões da memória. O bairro precisa ser pulsante o ano inteiro.

Para a Embratur, o turismo cultural em Oswaldo Cruz é uma aposta no que o Brasil tem de mais genuíno.

— O Brasil precisa ser promovido também por sua gente, suas histórias, sua cultura — diz Freixo.

Ele compartilha um exemplo recente:

— Embora ainda estejamos sistematizando os dados de impacto da Rota do Samba, já temos evidências qualitativas fortes. Numa palestra na Uerj, uma jovem moradora de Oswaldo Cruz, aluna de Turismo, contou que já percebe a chegada de visitantes. Queremos que esse impacto cresça. Mais turistas significam mais renda, mais oportunidades para artistas, guias e pequenos empreendedores. Nosso objetivo é que a Rota do Samba seja referência internacional de turismo comunitário e inspire outros territórios do Brasil.

A escola de samba Portela também abraça o projeto com entusiasmo. Para o presidente da agremiação, Junior Escafura, a valorização de Oswaldo Cruz como destino cultural é uma forma de preservar a memória do samba e fortalecer o território.

— Essa iniciativa do circuito cultural é fundamental para que as pessoas conheçam a história da escola e do bairro que a viu nascer. Oswaldo Cruz sempre revelou grandes sambistas e artistas, e é essencial dar visibilidade a essa riqueza — afirma Escafura.

Ele destaca que a quadra da Portela é um polo turístico e que a escola está sempre de portas abertas para iniciativas culturais:

— A Portela apoia e participa com orgulho. Projetos como esse precisam do apoio do poder público e da iniciativa privada. É importante que as pessoas respirem cultura. O samba é um dos maiores cartões-postais do Brasil — completa.

Entre os projetos da agremiação está a criação da Calçada da Fama, na entrada da escola, em homenagem aos fundadores e grandes nomes da história portelense.

— Estamos em conversas avançadas com a prefeitura e confiantes no apoio. Será mais um atrativo para moradores e visitantes. A ideia é valorizar a memória de quem fez a Portela ser a maior campeã do carnaval — diz.

Escafura lembra que a Portela desenvolve ações sociais e culturais ao longo de todo o ano e ressalta a importância do envolvimento da comunidade:

— A escola não funciona só no carnaval. Temos projetos ativos e um compromisso com a história do bairro.

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