No canto de Ipanema, sob a moldura do Morro Dois Irmãos e o som das ondas batendo nas pedras, fica o crowd mais icônico do Rio. É ali, nesse famoso pico de ondas de esquerda, entre as risadas dos amigos e o cheiro de água salgada, que Anderson da Silva, o Pikachu, aprendeu a se equilibrar entre o morro e o mar. Hoje, aos 25 anos, ele é conhecido como o “Príncipe do Arpoador” — título que nasceu de uma brincadeira entre amigos durante uma viagem a Regência (ES) e logo se espalhou pela praia.
- Leia mais: Samuel Pupo vence o Challenger de Saquarema e fica perto de voltar à elite do surfe mundial
- E também: Yolanda Hopkins faz história no Brasil e se torna a primeira surfista portuguesa a garantir vaga na elite feminina
Cria do Cantagalo, Pikachu encontrou nas ondas uma vocação e uma casa. Foi o tio Cunca quem lhe deu o apelido, inspirado no personagem japonês que o menino adorava, e também a primeira prancha. Cunca, surfista habilidoso, morreu dentro d’água, na Praia do Diabo, ao lado do Arpoador. Depois da perda, a avó Lídia Santos, a “Fia”, assumiu o papel de guardiã. Dona da tradicional Barraca da Fia há mais de 30 anos, é figura lendária da areia. Levava o neto com ela todos os dias, e ali, entre guarda-sóis, cangas e pranchas, ele aprendeu a respeitar o mar e a conviver com a tribo do surfe.
As primeiras ondas vieram antes dos cinco anos, empurrado pelo tio Denilson Thyola — surfista, ex-atleta profissional e um dos fundadores do Favela Surf Clube (FSC), projeto social que revelou dezenas de jovens do Cantagalo. Foi ali que Pikachu entendeu que o mar também era dele, que podia ser espaço de sonho e de trabalho.
Outro mestre dessa trajetória é Jean Carlos, professor há 24 anos da escolinha Surf Glória, uma das mais tradicionais do Arpoador. Foi ele quem organizou o primeiro campeonato do surfista.
— O surfe transformou a vida de muita gente. Além de um esporte que a gente ama, virou um ganha-pão, uma profissão — diz Jean.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/A/n/mDx8pSRBGsbzQojhW6zQ/foto-jinocencio-jeanpikachuthyola.jpeg.jpg)
Antes das seis da manhã, Jean já está na areia, observando o mar e postando o boletim do dia. Dentro da água, canta o hino do Botafogo, brinca com os alunos, incentiva a garotada. Assim como Pikachu e Thyola, ele também nasceu no Cantagalo e conhece cada corrente e cada rosto do pico:
— Hoje o crowd do Arpoador é uma mistura de tudo: alunos iniciantes, surfistas experientes, estrangeiros, moradores do asfalto e de comunidade.
Jean lembra que o surgimento das escolinhas foi fundamental para democratizar a praia, antes vista como território restrito. O Favela Surf Clube, criado nos anos 2000, mudou essa percepção e formou não só atletas, mas também professores. Muitos deles hoje vivem do surf e— e alguns, como Pikachu, viraram referência para as novas gerações.
A rotina do “Príncipe” é quase militar: acorda cedo, alonga, surfa, faz treino físico e psicológico. Nos intervalos, dá aula. Compete em campeonatos locais, estaduais e nacionais, além das etapas sul-americanas do Qualifying Series (QS), o circuito que dá acesso à elite mundial.
— A vida de atleta profissional é cara. As viagens, as inscrições… uma etapa do QS pode passar de mil reais. Para quem não tem patrocínio, é difícil participar de todas as competições — conta ele.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/2/I/6UZ4WmQPuYTTBnO1NtnA/112710673-esp-rio-de-janeiro-rj-16-10-2025-anderson-da-silva-o-pikachu-25-anos-melhor-surfista.jpg)
Jean reconhece as barreiras que ainda se impõem no esporte:
— Sem dúvida é mais difícil de chegar o patrocínio para quem não é “branquinho”. Ele deveria ter um salário mensal para conseguir focar na carreira profissional, como um contrato de trabalho.
As referências de Pikachu vêm do próprio Arpoador. Uma das maiores é Simão Romão, bicampeão do QS no Rio, que o levou ao Havaí em 2012. A viagem só aconteceu com a ajuda de rifas e doações no projeto “Bonde do Simão”. Desde então, o mar o levou longe: surfou em diversos estados brasileiros e, ainda em 2025, embarca para a Nicarágua para uma temporada de treinos.
Inspirado, o “Príncipe”, entre um campeonato e outro, comanda a Pikachu Surf School, onde ensina das seis da manhã até o meio da tarde, quando as condições do mar permitem. Nos intervalos entre as aulas, é comum vê-lo pegando uma ou duas ondas, só para não perder o ritmo. A mais recente vitória veio em setembro, no Campeonato Arpoador Surf Clube, em um dia de mar clássico na praia, quando a onda vem grande de trás da pedra..
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/l/A/SUBILURJuCXPwVLKxrgw/112710613-esp-rio-de-janeiro-rj-16-10-2025-anderson-da-silva-o-pikachu-25-anos-melhor-surfista.jpg)
Um dos momentos mais marcantes de sua trajetória foi quando venceu o surfista João Chianca, o Chumbinho, em uma bateria do QS na Prainha. Agora, ele disputa a Taça Brasil, cuja próxima etapa será na Guarda do Embaú, em Santa Catarina. O sonho é claro: conquistar o título brasileiro e uma vaga no CT, a elite mundial.
A cada resultado, o reconhecimento cresce. Pikachu já foi parado na rua por crianças de diferentes comunidades e por pais que dizem ter comprado pranchas para os filhos depois de vê-lo surfar. No Brizolão, onde fica o elevador que liga o Cantagalo a Ipanema, um grafite com seu rosto se transformou em símbolo de orgulho local.
— Ele sempre teve a mente boa. Quem vem da favela já carrega um peso diferente. Quando fui seu treinador, nunca gritei nem cobrei demais. Eu dizia: “entra no mar e se diverte — diz o tio e mentor Denilson Thyola.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/v/w/NXKUVyToykiSTH7qxA5w/foto-pikachu-brizolao.jpeg)
Entre o morro do Cantagalo e o mar do Arpoador, Pikachu segue firme, sustentado por uma mistura de fé, disciplina e paixão. Vive do surfe — e para o surfe —, guiado pelos mestres e guardiões que o formaram. No Arpoador, o Príncipe reina com o brilho tranquilo de quem fez do sonho o próprio caminho.