Quem chega na pequena São Luiz do Anauá (RR), a 270 quilômetros de Boa Vista, se depara com a obra de um portal suntuoso, de 25 metros de altura, no estilo greco-romano. A construção faraônica, orçada em R$ 2 milhões, foi um dos destinos das emendas Pix recebidas pela prefeitura nos últimos anos, mas, a exemplo de outros empreendimentos financiados com verba federal, foi abandonada pela metade. Parte dos recursos foi transferida para outras contas, impedindo que o destino final do dinheiro fosse conhecido.
As emendas de São Luiz do Anauá estão entre as que entraram na mira do Supremo Tribunal Federal (STF), que desde o ano passado determinou mudanças nas regras para aumentar a transparência e um pente-fino nos mais de R$ 20 bilhões enviados a municípios na modalidade Pix desde 2020. Nos casos mais graves, também ordenou bloqueio do envio de novas emendas.
Como mostrou O GLOBO, a movimentação dos recursos de emendas em diferentes contas por prefeituras, na prática, impede a identificação da destinação do dinheiro. As cifras são depositadas em uma conta de passagem e depois transferidas, sendo misturadas a outras verbas usadas pelo município para pagamentos correntes, como água, luz e salários dos servidores. É como se alguém que recebesse uma grande quantia para comprar uma casa, por exemplo, dividisse o valor em pequenos depósitos nas contas de parentes e amigos até que o negócio seja concretizado. Na hora de fechar o contrato, porém, as pessoas que receberam já teriam usado o dinheiro com seus próprios gastos.
As inspeções determinadas por Dino apontaram o uso desse modus operandi em ao menos 20 municípios que receberam recursos via emendas Pix nos últimos anos. Em uma decisão de maio, o ministro vetou a prática, obrigando que o dinheiro seja movimentado apenas na conta específica aberta para receber o recurso.
Além do portal incompleto, a prefeitura de São Luiz do Anauá também não soube explicar onde foi parar o dinheiro de ao menos outras quatro obras financiadas por emendas, todas paralisadas e fora do prazo de entrega. Entre elas estão a revitalização de uma praça, a pavimentação de vias e a construção de um conjunto habitacional com cem casas populares que deveria ter sido entregue em outubro do ano passado. O valor previsto para os imóveis era de R$ 5,3 milhões.
Ao visitar o canteiro de obras do conjunto habitacional, em março deste ano, auditores da Controladoria-Geral da União (CGU) encontraram apenas uma unidade concluída, além de 36 em estágio intermediário e outras cinco com a estrutura montada, mas sem telhado. O cenário, segundo o relato, era de abandono, sem sinais de trabalhadores no local.
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Procurado, o atual prefeito, Chicão (PP), não respondeu aos contatos da reportagem. Em ofício enviado ao STF, em abril, ele aponta a “desorganização financeira” da gestão anterior como justificativa para a falta de explicações sobre como as verbas foram utilizadas. No documento, o prefeito afirma ainda ter encontrado suspeitas de “possíveis desvios de verbas federais e estaduais, que já estão sendo objeto de apuração interna e foram devidamente encaminhados aos órgãos de controle”.
Questionado sobre o que fez com o dinheiro das emendas e as suspeitas levantadas pelo seu sucessor no cargo, o ex-prefeito James Batista (SD) não se manifestou.
Parlamentares que indicaram os valores têm se eximido da responsabilidade sobre a destinação de suas emendas e alegam que cabe à gestão municipal explicar. Um dos autores das emendas para São Luiz do Anauá, o senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), afirma não ter controle sobre como o dinheiro foi utilizado.
— Eu não tenho como acompanhar os recursos. Quando coloco lá, o prefeito decide o que vai fazer. É o que aconteceu na época. O que a prefeitura lá e o prefeito anterior me disseram é que a emenda foi 100% executada — disse Mecias de Jesus.
Mas o abandono de obras não é a única maneira utilizada por prefeituras para mudar a destinação dos recursos recebidos via emendas. Em Vicentina (MS), cidade de 7 mil habitantes localizada a 295 quilômetros de Campo Grande, por exemplo, cinco carros adquiridos com verbas federais foram vendidos sem que a prefeitura informasse para onde foi o dinheiro obtido com os negócios.
Os cinco automóveis, comprados com verbas do orçamento secreto — modalidade extinta em 2022 pela falta de transparência sobre os autores das emendas —, tinham como finalidade o transporte de pacientes da zona rural da cidade para unidades de saúde. Conforme as notas fiscais das compras, cada veículo saiu por R$ 63,9 mil.
Por determinação de Dino, a CGU foi até a cidade no fim do ano passado para conferir como o dinheiro foi utilizado, mas chegando lá os auditores foram informados de que os veículos haviam sido vendidos em um leilão. Cobrada a prestar contas, a prefeitura não apresentou justificativas para a venda dos bens, tampouco documentação que embasasse o leilão.
— Não consegui descobrir (para onde foi o dinheiro). A antiga gestão sumiu com todas as informações do leilão. Não apareceu no balanço do ex-prefeito. Quando a gente assumiu, já tinha tido essa fiscalização (da CGU) e já tinham constatado as irregularidades — afirmou o atual prefeito, Cleber Dias da Silva (MDB), que tomou posse em janeiro deste ano.
A reportagem também procurou o ex-prefeito Marcos Bennetti, o Marquinhos do Dedé (PSDB), que administrava Vicentina na época do leilão, mas ele não retornou os contatos.
O dinheiro de emendas também desapareceu em Mucajaí (RR), município de 18 mil habitantes a 57 quilômetros da capital, Boa Vista. Em 2023, a cidade recebeu a maior quantia de sua história: um repasse de R$ 16 milhões feito pelo então deputado federal Edio Lopes (PL-RR), aliado político da então prefeita Eronildes Aparecida Gonçalves (PL).
Entre as obras previstas pela prefeitura com o valor da emenda estava a recuperação de estradas vicinas, com serviços como terraplanagem e revestimento. Uma fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU) no local indicado onde a obra deveria ter ocorrido, porém, constatou que só havia uma trilha aberta em meio à vegetação, sem sinais de melhorias.
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Além disso, a prefeitura justificou o uso da emenda na contratação de serviços de limpeza urbana — incluindo capina, roçagem, caiação de meio-fio e manutenção de praças — e manutenção de veículos oficiais. Em ambos os casos, porém, a gestão municipal não apresentou documentos que comprovassem que as benfeitorias foram realmente realizadas.
— Eu passei essa situação para o jurídico. A gente já tinha mandado para o Tribunal de Contas tudo o que estava acontecendo. Tem um negócio aí que não estava batendo — afirmou o atual prefeito, Francisco Rufino de Souza, o Chiquinho Rufino (Republicanos).
Também procurados, a ex-prefeita Eronildes Aparecida Gonçalves e o ex-deputado Edio Lopes não retornaram os contatos.
Casos como esses estão na mira de ministros do STF, que contabilizam ao menos 80 investigações abertas envolvendo repasse de emendas — algumas delas sigilosas. Operações da Polícia Federal nos últimos meses apontaram suspeitas de uso de laranjas, repasse para empresas fantasmas e agiotas contratados para cobrar de volta os valores repassados a prefeituras. (Colaboraram Sarah Teófilo e Eduardo Gonçalves)