A diversidade da matriz energética brasileira é chave para colocar o país como liderança global na transição para uma economia de baixo carbono — e o aumento da participação do gás natural é estratégico nesse caminho. O assunto foi destaque no evento “Energia multipotencial para a transição energética”, realizado pelo grupo Energisa dentro da programação do Energy Summit. O CEO da Energisa, Ricardo Botelho, destacou na abertura a necessidade de pensar a transição como um processo longo e complexo, que acontecerá em ritmos diferentes e precisa contemplar realidades distintas. Segundo ele, nesse processo, é importante o conceito de adição energética, no qual as fontes renováveis se somam, e não substituem de imediato o petróleo e o gás natural. Botelho também destacou que, no processo de transição, é essencial o respeito às desigualdades regionais e às características energéticas de cada país:

— Não precisamos copiar modelos. Podemos construir os nossos. É um convite para que possamos refletir juntos e fazer boas trocas para tomadas de decisão que viabilizem na prática um futuro energético mais viável — disse. O encontro, que teve a parceria do MIT Technology Review e da Editora Globo e fez parte das comemorações dos 120 anos da Energisa, reuniu especialistas, representantes da academia, empresários e investidores na manhã do dia 25 de junho, na Cidade das Artes.

O panorama internacional ficou a cargo de Georgina Campbell Flatter, professora do MIT e CEO do Greentown Labs, uma das maiores incubadoras de startups climáticas e de energia do mundo (veja na página ao lado), enquanto os desafios e potencialidades do Brasil foram debatidos por Ricardo Botelho; Joaquim Levy, diretor de Estratégia Econômica e Relações com o Mercado do banco Safra e ex-ministro da Fazenda; e Vittorio Perona, sócio do BTG Pactual. Além de avaliar o potencial e os desafios do gás natural, os três analisaram as oportunidades que o Brasil pode ter para atrair datacenters e o cenário dos biocombustíveis no país.

O papel estratégico do gás é reforçado quando se levam em conta projeções de que a inteligência artificial provocará um aumento de até 50% no consumo de energia na próxima década, em um momento de corrida mundial para conter as emissões de carbono. O gás é menos poluente do que fontes térmicas como diesel ou carvão e é uma energia estável, o que aumenta a segurança do sistema.

Outro fator importante é o potencial de crescimento do consumo, que ainda é muito baixo comparado a outros países, devido à falta de políticas públicas e à localização das grandes reservas a centenas de quilômetros da costa. Vittorio Perona lembrou que existe uma grande demanda reprimida por gás na indústria e no setor de geração elétrica. Para ele, é importante fomentar o consumo, investir na construção de infraestrutura e criar um círculo virtuoso que barateie os custos para o consumidor final.

Ricardo Botelho, CEO do Grupo Energisa — Foto: Eduardo Uzal/GLab

Estamos diante de um momento que exige responsabilidade e visão de futuro. O caminho que vamos percorrer passa por uma energia multipotencial — uma nova forma de pensar a transição energética, que reconhece a convivência entre diferentes fontes e realidades”

— RICARDO BOTELHO, CEO do Grupo Energisa

Joaquim Levy vê na região Nordeste uma característica que pode contribuir para mudar essa realidade lá os campos de gás offshore são mais perto da costa, e existem campos terrestres, o que facilita a distribuição para usinas térmicas e indústrias. Ricardo Botelho citou números para mostrar o potencial da região. O Nordeste é o segundo maior mercado, mas a penetração de gás natural é incipiente, de apenas 1,3% — contra 5% do Brasil e 22% da média mundial. A região tem como vantagens as menores tarifas do país, porque 70% do fornecimento vem de pequenos e médios produtores, o que aumenta a competição. Botelho também destacou que no Ceará onde a Energisa opera, 15% do fornecimento do gás já vem do biometano, talvez o maior percentual dessa fonte no Brasil.

Para destravar o mercado de gás natural, o Brasil precisa de políticas públicas que incentivem o consumo. Levy defende horizonte e segurança para que empresários possam investir, e Perona pontua que um caminho possível é a realização de leilões de transmissão, a exemplo do que já se faz no setor elétrico.

Vittorio Perona, sócio do BTG — Foto: Eduardo Uzal/GLab
Vittorio Perona, sócio do BTG — Foto: Eduardo Uzal/GLab

O consumo de gás natural no Brasil é muito baixo, comparado aos patamares mundiais. É marginalmente superior ao de Cuba; um sétimo da Argentina; um terço do México; um décimo da Europa; e um vigésimo dos Estados Unidos”

— VITTORIO PERONA, sócio do BTG

Como terreno privilegiado para energia multipotencial, o Brasil destaca-se também como possível destino de investimentos internacionais em datacenters, que demandam grande volume de energia por concentrar computadores, processadores e todo tipo de equipamento e hardwares necessários para a utilização de dados. Para Ricardo Botelho, nesse contexto o Brasil tem grande vocação para se tornar protagonista global na atração desse setor.

Para Perona, a região Nordeste é a mais promissora para atrair esses investimentos. Pesa nessa avaliação, além da confluência do potencial de crescimento do gás com a geração eólica, a existência de um arcabouço de transmissão muito melhor que o de outros países. Também não existe no Brasil a pressão política contrária aos datacenters que existe na Europa, devido ao altíssimo consumo de energia desse setor, o que impactaria no custo da eletricidade.

Precisamos continuar trabalhando a agenda de reconhecimento de biocombustíveis do Brasil. No G20 houve esse trabalho, temos de continuar. Somos muito bons em atender mercado, mas temos que aprender a criar mercado. Entre nossos grandes trunfos, está a produção de SAF, combustível de aviação com conteúdo renovável”

— JOAQUIM LEVY, diretor de Estratégia Econômica e Relacionamento com o Mercado do banco Safra

Levy comemorou o plano do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de desonerar esses centros de dados, como política para atraí-los.

— O investidor vai ficar mais seguro ao não ter que esperar todas as etapas da reforma tributária.

Com matriz elétrica 90% renovável, Brasil pode assumir liderança mundial em energia Tecnologia é chave no combate ao aquecimento global

País que enfrentou a crise do petróleo na década de 1970 com Proálcool e tecnologia de exploração em águas profundas tem chance de se destacar na crise climática com fontes limpas e inovação

Painel com Ricardo Botelho (à esquerda), Vittorio Perona e Joaquim Levy (na tela): evento lotado para discutir os desafios da transição energética — Foto: Eduardo Uzal/GLab
Painel com Ricardo Botelho (à esquerda), Vittorio Perona e Joaquim Levy (na tela): evento lotado para discutir os desafios da transição energética — Foto: Eduardo Uzal/GLab

O Brasil sempre buscou soluções inovadoras nas grandes crises do setor de energia. O CEO da Energisa, Ricardo Botelho, lembra que foi assim na crise do petróleo, na década de 1970, quando o governo brasileiro criou o Proálcool, programa de estímulo ao etanol, fazendo com que o país seja, até hoje, grande produtor de biocombustíveis. O programa permitiu que o Brasil deixasse de ser dependente de petróleo no momento de uma grave crise cambial. “O Brasil deu uma guinada mudando toda a indústria automobilística e criando condições para que a indústria de etanol pudesse se desenvolver.”

Também em meio à crise do petróleo, o governo decidiu investir na exploração em águas profundas, desenvolvendo tecnologia de ponta mundial capaz de levar o país deficitário à autossuficiência em petróleo. Em 2006, a descoberta do pré-sal e a decisão de encarar uma camada de 4 mil metros de sal para alcançar as reservas gigantescas da Bacia de Santos colocaram o país, em 20 anos, entre os oito maiores produtores do mundo.

— O Brasil produzia 70 mil barris de petróleo por dia, agora produz 3,5 milhões. No minério, era o sétimo no ranking, agora é o segundo, e muito disso por tecnologia. Na agricultura, tornou- -se liderança em exportação de alimentos. Assim como se tornou liderança mundial em exportação de alimentos, um dos líderes de petróleo e minério de ferro, também pode ser líder em energia — afirmou o sócio do BTG Vittorio Perona.

O mundo já passou por várias transições energéticas. Estamos falando da mais recente. Por exemplo, o uso intensivo de biomassa, lenha, carvão, petróleo, gás, energia nuclear e hidrelétricas. Precisamos considerar que o aspecto da transição vai além da simples troca de combustíveis”

— RICARDO BOTELHO, CEO do Grupo Energisa

Já o diretor de Estratégia Econômica e Relações com o Mercado do banco Safra, Joaquim Levy, destacou a importância das políticas públicas que levaram o país à liderança desses mercados. Lembrou que a agricultura foi beneficiada por crédito, mas também pelo apoio da inovadora Embrapa no desenvolvimento de tecnologias que aumentaram a produtividade e melhoraram a qualidade dos produtos brasileiros.

Políticas públicas e decisões acertadas no setor de energia também foram destacadas por Ricardo Botelho. Da década de 1930 quando Getúlio Vargas implementou o Código de Águas, abrindo caminho para geração hidrelétrica, à década passada, quando o país adotou os leilões de energias renováveis, que culminaram na disparada de fontes limpas. Dos anos 1950 aos 1990, ele destaca o grande programa de construção de hidrelétricas, que conferiu confiabilidade ao sistema elétrico.

— Nosso grupo é testemunha do progresso que o Brasil teve, das decisões acertadas no campo da energia que o país tomou ao longo desses 120 anos. Houve muito mais acertos do que erros no campo da energia, temos exemplos — disse Botelho, ao comemorar o aniversário da Energisa. O racionamento de 2001 também deu lições ao Brasil, que se apressou em construir as termelétricas para dar mais segurança ao sistema. São medidas, segundo o CEO da Energisa, que levaram a uma diversidade energética competitiva, e isso tem que ser olhado com bastante atenção.

— Estamos num momento decisivo da transição energética do Brasil. Fizemos o dever de casa. Temos uma matriz 90% renovável. Para dar alguns exemplos, nos últimos 20 anos, de 2004 a 2023, expandimos a capacidade instalada do Brasil em 150%, de 91 GW para 296 GW; as fontes eólica e solar eram praticamente inexistentes, e agora já somam 30% da capacidade instalada. Hidrelétricas também cresceram, 41 GW, mas reduziram participação para 49% no total.

Levy, que foi ministro da Fazenda no governo de Dilma Rousseff, alerta para a necessidade de um trabalho diplomático para dar reconhecimento aos biocombustíveis brasileiros no exterior. Entre os grandes trunfos do Brasil está o SAF, combustível de aviação com conteúdo renovável, que pode ser produzido com óleos de excelente qualidade desenvolvidos aqui.

Tecnologia é chave no combate ao aquecimento global

Professora do MIT e CEO de uma das maiores incubadoras de startups climáticas e de energia do mundo, Georgina Campbell Flatter aponta inteligência artificial e inclusão como grandes desafios

desafiosGeorgina Campbell na apresentação “Visão global da transição energética: desafios e oportunidades” — Foto: Eduardo Uzal/GLab
desafiosGeorgina Campbell na apresentação “Visão global da transição energética: desafios e oportunidades” — Foto: Eduardo Uzal/GLab

O evento “Energia multipotencial para a transição energética” teve a participação especial de Georgina Campbell Flatter, professora do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e CEO do Greentown Labs, uma das maiores incubadoras de startups climáticas e de energia do mundo. Em sua apresentação, Georgina falou sobre o papel da inovação e a importância da tecnologia no enfrentamento da crise climática e da transição energética.

Georgina estima que na próxima década o mundo precisará aumentar a geração de energia em um percentual entre 30% e 50%, e usou o ChatGPT como exemplo do desafio que a inteligência artificial representa: uma única busca que utilize a ferramenta consome a mesma quantidade de energia que uma geladeira ligada durante uma hora. Ela destacou, no entanto, que o maior desafio é garantir a 1,2 bilhão de pessoas, hoje excluídas, o direito a usar energias limpas.

— A inovação acontece quando unimos talentos, redes e propósito em torno de um desafio comum: garantir energia limpa, confiável e acessível para todos — disse, durante a palestra “Visão global da transição energética: desafios e oportunidades”.

Estamos diante de um momento de urgência, mas também de grandes oportunidades. A inovação acontece quando unimos talentos, redes e propósito em torno de um desafio comum: garantir energia limpa, confiável e acessível para todos”

— GEORGINA CAMPBELL FLATTER, professora do MIT e CEO da Greentown Labs

O Greentown Labs comanda uma rede de 600 startups com milhares de ideias inovadoras, proporcionando que elas ganhem escala com o compartilhamento de estruturas e trocas de tecnologia, mostrando o valor da colaboração para esta e as próximas gerações. São 20 mil investidores que buscam empresas para onde destinar seus recursos. Em quatro anos de trabalho da rede, foram criados 14 mil empregos.

Segundo Georgina, a organização que dirige acredita que soluções tecnológicas globais funcionam no enfrentamento de desafios locais. E citou o fornecimento de serviços de meteorologia de última geração para vários países da África como um caso bem-sucedido. O modelo foi implementado em parceria com a Fundação Gates pela Tomorrow Now, organização sem fins lucrativos onde ela atuou anteriormente.

Ricardo Botelho enfatizou que a participação da Energisa ao lado do MIT no evento reafirma a vocação do grupo como uma energy tech que acredita na força da colaboração e do conhecimento para transformar o setor energético.

— O Brasil, com sua diversidade e potencial, tem todas as condições de liderar esse movimento global. A Energisa quer fazer parte dessa construção — disse o CEO da Energisa.

Debate sobre energia multipotencial é estratégico para o Brasil