Ao enumerar o crescente poderio militar russo, e considerar uma “loucura” ignorar a ameaça imposta pelo governo de Vladimir Putin, o presidente da França, Emmanuel Macron, deu um passo além em seus planos para incrementar a capacidade defensiva da Europa: em um discurso na TV no começo do mês, disse estar disposto a abrir as discussões para estender a possibilidade de usar seu arsenal nuclear para a proteção do continente.

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Os comentários refletem os sentimentos de lideranças europeias desde a eleição de Donald Trump nos EUA: o de que a parceria de Washington com os europeus não é mais a mesma, e que nem alguns pilares de segurança, como o compromisso americano de usar armas nucleares contra ameaças existenciais ao continente, são mais 100% garantidos.

Os alertas começaram a soar ainda durante a campanha presidencial, quando Trump disse que poderia encorajar Putin “a fazer o que diabo ele quisesse” com os membros europeus da Otan, a principal aliança militar do Ocidente, caso a Rússia invadisse o continente e eles não pagassem um valor “adequado”. Após a vitória, disse que os países da organização deveriam gastar o equivalente a 5% de seus PIBs com Defesa, bem acima do patamar médio atual, de 2% do PIB.

— Macron já havia feito uma oferta semelhante em fevereiro de 2020 e, mesmo antes disso, presidentes franceses anteriores reconheceram que os “interesses vitais” franceses, que se referem aos interesses que seriam protegidos pelas forças nucleares francesas, também incluem a Europa — afirmou ao GLOBO Xiaodon Liang, analista de políticas de armas nucleares e desarmamento na Associação para o Controle de Armas. — O que mudou agora é o interesse de Alemanha, Polônia e outros países, e se eles ainda acreditam que a oferta francesa aumenta sua segurança nacional após discussões com Macron.

Cinco principais arsenais nucleares — Foto: Editoria de Arte

Segundo a Federação de Cientistas Americanos, do arsenal de 5.224 ogivas nucleares dos EUA (incluindo operacionais, armazenadas e prontas para o desmantelamento), 100 estão armazenadas em cinco países da União Europeia e na Turquia, também membro da Otan. Dentro do compromisso americano na aliança, caso a Europa sofresse um ataque em larga escala, inclusive com armas nucleares, os arsenais seriam empregados.

— Embora os EUA continuem a reafirmar seu compromisso com a dissuasão nuclear estendida em declarações públicas, a falta de clareza quanto à sua determinação política deixou os membros da Otan, especialmente os da Europa, questionando a futura credibilidade política da dissuasão — disse ao site do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais Doreen Horschig, pesquisadora do projeto sobre questões nucleares da instituição.

A incerteza foi uma chance para Macron defender uma nova política de defesa europeia, que dependa menos dos EUA e, ao mesmo tempo, demonstrar suas capacidades nucleares.

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A França tomou o passo decisivo para construir suas bombas atômicas em 1956, quando os EUA obrigaram Londres e Paris a desistirem de uma ofensiva para retomar o controle do Canal de Suez, no Egito. A ideia, notadamente de Charles de Gaulle, era criar um programa “francês” e “independente” dos EUA, embora Washington tenha fornecido assistência técnica a partir dos anos 1970.

Além de De Gaulle, seus sucessores também tentaram, sem sucesso, avançar a ideia de um “guarda-chuva nuclear europeu”, liderado pela França. Em 1994, François Mitterrand disse que o continente deveria “adotar noções claras de interesses vitais comuns”, premissa ampliada por Jacques Chirac e sua “dissuasão concertada”, em 2006. Dois anos depois, Nicolas Sarkozy defendeu “um diálogo aberto sobre o papel da dissuasão e sua contribuição para a nossa segurança comum”, e em 2015, François Hollande citou o poderio nuclear ao falar dos riscos de uma agressão à Europa.

Mas Macron sabe que, em termos práticos, a criação de uma zona de defesa nuclear puramente europeia, é especulativa e inviável a curto ou médio prazo.

Apesar da desconfiança em relação aos americanos, o arsenal francês foi construído como um “último recurso” contra um ataque da União Soviética, e a linha principal de defesa ainda seria fornecida por Washington. Em números, são 290 ogivas, das quais a maioria — 240 — está a bordo de submarinos, e as demais para uso em aviões de combate. A decisão final sobre um ataque, como tem reiterado Macron, jamais deixará de ser de Paris.

Um hipotético guarda-chuva nuclear europeu poderia receber o apoio do Reino Unido, que em 2016 decidiu pela saída da União Europeia, mas que, desde a eleição do trabalhista Keir Starmer, no ano passado, faz acenos a Bruxelas. Seu arsenal é composto por 225 ogivas operacionais, baseadas em quatro submarinos — segundo a doutrina nuclear do país, o uso das armas deverá ocorrer “apenas em circunstâncias extremas de legítima defesa, incluindo a defesa dos aliados da Otan”.

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Mas, ao contrário dos franceses, os britânicos reconhecem que seu poderio nuclear depende dos EUA. Os mísseis Trident são fabricados nos Estados Unidos, a manutenção é feita em conjunto pelos dois países, e a maior parte dos testes nucleares realizados pelo Reino Unido — 24 — ocorreu no deserto americano de Nevada. Um cenário visto como preocupante por muitos em Londres, ainda mais com a intempestividade de Trump.

— Parece que temos um presidente que está disposto a intimidar e persuadir as forças ucranianas a fazerem coisas que não consideram do seu interesse. Isso não é um contratempo no relacionamento, algo fundamental está acontecendo, e precisamos olhar muito de perto o que fazemos agora sobre a Europa — declarou, no começo do mês, o ex-embaixador britânico em Washington, David Manning, sem descartar o encerramento do acordo de cooperação nuclear entre EUA e Reino Unido, por ordem de Trump.

Em números e capacidade operacional, mesmo que britânicos e franceses juntassem seus arsenais, seu número de ogivas não chegaria a 10% do total controlado pelos russos — ao todo, são 5.580, sendo que 1.549 prontas para serem usadas a qualquer instante. No começo do mês, logo após o discurso de Macron, Putin afirmou que “ainda há pessoas que querem voltar aos tempos de Napoleão, esquecendo como tudo terminou”, referindo-se ao imperador e comandante militar que liderou a França no século XIX, e que sofreu uma dura derrota durante a Campanha da Rússia, que marcou o início de seu declínio. Em resposta, Putin foi chamado de “imperialista” pelo líder francês.

— A Europa nunca estará verdadeiramente segura vivendo sob a constante ameaça de armas nucleares. O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, zombou recentemente do tamanho do arsenal da França em uma entrevista, mas a realidade é que a Rússia há muito tempo busca trazer as forças nucleares da Otan para o escopo do controle de armas EUA-Rússia — disse Liang.

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Até o momento, os EUA não deram qualquer sinal de que pretendam remover suas armas nucleares da Europa. No mês passado, a Federação de Cientistas Americanos publicou um relatório apontando que Washington pode posicionar armas nucleares no Reino Unido após quase duas décadas, um movimento iniciado ainda no governo de Joe Biden e ligado à guerra na Ucrânia.

A Polônia disse estar disposta a conversar sobre o “guarda-chuva nuclear” francês, mas sem abrir mão da proteção dos EUA — à BBC, o presidente polonês, Andrzej Duda, afirmou que a presença de armas nucleares americanas em seu território, em vez de soar como provocação, seria uma “linha defensiva” contra Moscou. Liang não concorda.

— Elas seriam mais fáceis de serem destruídas preventivamente pelas forças russas e, por causa dessa tentação, sua presença pode ser desestabilizadora em uma situação de crise. Além disso, França tem menos ogivas no geral do que os Estados Unidos e pouca experiência em baseá-las no exterior — concluiu.

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