Será retomado amanhã o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 pelo STF, após a apresentação do voto do relator, ministro Edson Fachin. O objetivo principal da ação é limitar a excessiva violência policial no Estado do Rio de Janeiro, especialmente voltada contra a população das favelas, pobre, predominantemente negra e, na esmagadora maioria, sem qualquer relação com o crime organizado.

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A ADPF 635, também conhecida como ADPF das Favelas, foi proposta em outubro de 2019 pelo PSB e vem sendo conduzida em parceria com um conjunto de organizações da sociedade civil e do próprio estado, como a Defensoria Pública. No seu âmbito, o STF proferiu decisões muito importantes, envolvendo medidas como a imposição do uso de câmeras nas fardas dos agentes de segurança, o fortalecimento do controle externo do Ministério Público sobre a atividade policial, a exigência de melhor planejamento das operações e a adoção de medidas voltadas à proteção da vida das crianças nas escolas durante as incursões policiais. Ao contrário do que por vezes se difunde, o STF nunca proibiu operações em favelas — o número delas até aumentou durante a tramitação da ADPF —, tampouco impediu o uso de qualquer tipo de armamento ou de helicópteros pela polícia.

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A ADPF já produziu resultados expressivos. Em 2019 houve, de acordo com dados oficiais, 1.814 mortos por intervenção policial no estado. Trata-se de número superior ao de mortes provocadas no mesmo ano por todas as polícias dos Estados Unidos, que têm mais de 300 milhões de habitantes. Em 2024, esse número caiu para 699, redução de 61,5%. A cifra de mortes é ainda inaceitável — cerca de 70% superior à média nacional per capita, já muito elevada —, mas trata-se certamente de grande avanço.

Ao longo desse período, ao contrário do que difundem certas fake news, não houve aumento da criminalidade no Estado do Rio de Janeiro. Pelo contrário, os dados oficiais comprovam que, de 2019 para cá, caíram todos os índices mais importantes de criminalidade no estado: homicídios, roubos, morte de policiais em serviço etc.

Não há dúvida de que o domínio de facções e de milícias sobre frações do território é uma realidade terrível, que deve ser combatida com vigor, com o uso de inteligência, asfixia financeira das organizações criminosas e também com operações policiais bem planejadas. Tal realidade, contudo, precede em muito à ADPF 635, ligando-se a dinâmicas que também se manifestam noutros estados. Uma das causas é a incompetência do governo estadual para enfrentar a criminalidade. E, diante do fracasso, o governo tenta converter o STF em bode expiatório.

Isso se viu com clareza quando ocorreu a destruição do “resort” que o traficante Peixão mantinha. Perante a imprensa, a polícia alegou que a demora para destruição era “culpa da ADPF”. Depois, em furo jornalístico, O GLOBO mostrou a verdadeira causa da demora: a pressão de políticos da base do governo estadual sobre o batalhão da PM responsável pela área.

De todo modo, o STF pode contribuir para o equacionamento também dessa questão, se envolver mais a Polícia Federal no combate às facções e milícias, que, afinal, também praticam crimes federais e atuam em vários estados.

A ADPF das Favelas deve ser julgada procedente, e o Tribunal deve monitorar as medidas impostas, com apoio de especialistas e da sociedade civil. Com isso, a democracia e a Constituição alcançarão, com muito atraso, territórios pobres em que nunca penetraram, onde tem vigorado uma espécie de Estado de exceção permanente.

*Daniel Sarmento é professor titular de Direito Constitucional da Uerj e advogado do autor na ADPF 635, atuando em caráter pro bono, Ademar Borges é professor de Direito Constitucional do IDP e advogado do autor na ADPF 635, atuando em caráter pro bono

É possível combater a criminalidade sem violar a Constituição