O edital do Ministério da Educação (MEC) que facilitou a abertura de novos cursos de Medicina gerou reações de parte das instituições privadas, além de um racha dentro da rede particular. O ponto de discórdia são as regras específicas criadas para as entidades comunitárias, que são sem fins lucrativos — elas permitiram, por exemplo, que a Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio) habilite-se a oferecer a graduação na área, algo que buscava há uma década. Outras faculdades privadas, no entanto, entendem que passaram a ser alvo de normas mais rígidas do que as permitidas à concorrência e iniciaram uma ofensiva junto ao governo federal em busca de “isonomia regulatória”.
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Nos últimos anos, as particulares com fins lucrativos dominaram a Medicina no Brasil. Entre 2014 e 2024, passaram de 1,3 mil cursos para 4,3 mil. Já o número nas comunitárias subiu de 1,6 mil para 1,9 mil no mesmo período.
Esse é um mercado que movimenta R$ 26,4 bilhões por ano, o equivalente a 40% de todo o mercado de ensino superior, e por isso gera intensas disputas. Enquanto as instituições divergem sobre as normas, há um consenso entre o governo e associações médicas de que a abertura de novos cursos precisa ser regulada para garantir alguma qualidade na formação.
Em 30 de setembro, cinco dias depois da publicação do edital com as regras para as comunitárias, a Associação Brasileira de Mantenedoras de Educação Superior (ABMES) enviou ao MEC um ofício, obtido pelo GLOBO, alegando que o novo modelo é “mais acessível e flexível” e “menos oneroso” às concorrentes, gerando um “desequilíbrio competitivo”. O texto pede que “sejam estendidos às instituições privadas de ensino superior os mesmos critérios” das comunitárias. O documento é assinado pelo empresário Janguiê Diniz, presidente da ABMES e fundador do Ser Educacional, um dos maiores conglomerados de ensino privado do Brasil, e um forte concorrente em Medicina no país.
A Lei do Mais Médicos, que as instituições com fins lucrativos precisam atender, define que o MEC só deve liberar cursos de Medicina em locais com baixa relação no número de médicos por habitantes. O novo edital, no entanto, determinou que as comunitárias não precisam se submeter a essa regra, bastando a existência de uma parceria com um hospital público. Na avaliação da ABMES, esse é um dos principais benefícios que o MEC garantiu a essas entidades.
“Solicitamos tratamento isonômico para todas as instituições de ensino diante da decisão recente que concedeu benefícios às universidades comunitárias no processo de autorização de cursos de Medicina”, reafirmou a ABMES, em nota, ao GLOBO.
A avaliação é a mesma de outros grupos que representam instituições com fins lucrativos, como a Associação dos Mantenedores Independentes Educadores do Ensino Superior (Amies) e a Associação Nacional de Universidade Privadas (Anup), que também se queixou em ofício ao MEC. Neste caso, porém, o pedido é para que as comunitárias tenham os parâmetros mais rígidos que elas já precisam enfrentar — já a ABMES pleiteia normas mais brandas para todos. Até agora, o MEC não sinalizou possíveis revisões.
A Associação Brasileira das Instituições Comunitárias de Educação Superior (Abruc), por sua vez, nega qualquer favorecimento. O grupo alega que as diferentes naturezas (uma com e outra sem fins lucrativos) das instituições justificam regulações distintas, assim como as universidades públicas também são submetidas a regras específicas. De acordo com Dyogo Patriota, assessor jurídico da Abruc, as faculdades privadas que reclamam das comunitárias possuem regramentos mais brandos em outros pontos de análise.
— Elas podem se conveniar com hospitais públicos ou privados, por exemplo. As comunitárias, só públicos. Além disso, podem buscar leitos em uma região que vai além do município, enquanto para a gente precisa ser dentro da mesma cidade. Por isso acho injusto o argumento de quebra de isonomia — discorre.
Já o reitor da PUC-Rio, padre Anderson Antonio Pedroso, vê uma “guerra de narrativa” e avalia a criação do novo edital como uma “correção histórica”. Na avaliação de Pedroso, até então as comunitárias sofriam para concorrer diante de grandes grupos privados.
— Nós sempre entramos na fila como as demais. Mas vários critérios econômicos impediam que as comunitárias, que não são negócios, não são empresas de lucro, pudessem alcançar as vagas — diz.
O edital com as novas regras para as comunitárias veio após uma intensa movimentação do prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), aliado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que gostaria de ver aberto o curso de Medicina da PUC-Rio na cidade. A graduação terá parcerias com hospitais municipais, inclusive comprando novos equipamentos médicos, e com Unidades de Pronto Atendimento (UPAs).
‘Muito obrigado, ministro’
No Dia dos Professores, Paes agradeceu em um evento público, ao lado de Lula, pelo ministro da Educação, Camilo Santana, ajudar “o Rio numa grande conquista que é a futura faculdade de Medicina da PUC”.
— Muito obrigado, ministro, por todo seu esforço — destacou o prefeito há dez dias.
Pessoas envolvidas nas conversas afirmam que, além da proximidade entre Paes e o presidente, pesou ao governo federal a possibilidade de garantir uma entrega à Rocinha, uma das maiores comunidades do país, que fica no entorno da PUC-Rio. No projeto da universidade, está previsto um convênio com a prefeitura que beneficiará unidades de saúde que atendem a favela.
A instituição, com o novo edital, reúne todas as condições para ser habilitada, mas o processo ainda ocorrerá. Depois, ela precisará ter o curso autorizado por avaliações do MEC e do Conselho Nacional de Saúde. Para o reitor da PUC-Rio, a prefeitura ajudou porque “compreendeu o modelo proposto”.
— Não vamos nos servir dos hospitais públicos. Vamos contribuir com eles, equipando com pesquisa e tecnologia para melhorar a vida da população. Quando conversamos com o ministro da Saúde, lembramos a ele que a Rocinha ainda não venceu a tuberculose. Como podemos estar tranquilos com isso, sendo uma universidade de ponta? A PUC tem que estar a serviço da sociedade e queremos responder a esse desafio — sustenta.
Segundo Dyogo Patriota, da Abruc, a PUC-Rio não é a única beneficiada pelo edital. Ele frisa que há outras comunitárias interessadas em abrir seus cursos de Medicina, com leitos disponíveis — um dos requisitos previstos pelo edital —, em capitais como Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e Curitiba.
— Elas estão em processo de conveniamento com as prefeituras. Têm até abril de 2026 para completarem esse processo, que não é fácil — explica o assessor jurídico.
Em nota, o MEC alegou que as universidades comunitárias, em razão da sua função social, possuem aspectos diferenciados e podem realizar parceria com o poder público para ofertar serviços de interesse para a população. “A alteração do edital foi realizada para regulamentar essa possibilidade, já prevista em lei, para a oferta de cursos de Medicina”, acrescenta o texto.

