Resgatado de um telhado nas enchentes que mataram 184 pessoas no Rio Grande do Sul, o cavalo Caramelo vive na fazenda-escola da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) e tem 100 mil seguidores em sua rede social mantida pela instituição. Mas se foi um símbolo dos efeitos da devastação no estado de maio a junho do ano passado, Caramelo não é uma analogia para o que houve depois da enchente, com sua rotina tranquila de quem encontrou um abrigo. Um ano após a primeira morte pelas chuvas, a reconstrução e a implementação de programas de segurança anticheias enfrentam entraves, por dificuldade de entrega e disputas políticas entre aliados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o governador Eduardo Leite (PSDB).
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O mais recente capítulo da disputa gira em torno dos R$ 6,5 bilhões de um fundo extraordinário do governo federal para o combate a enchentes. O governo gaúcho enviou um ofício à União pedindo a liberação de R$ 3 bilhões. Mas petistas dizem que a solicitação foi apresentada sem nenhum projeto, o que seria preciso para o repasse. Secretário para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, Maneco Hassen (PT) afirma que o ofício só surgiu após “cobranças mais incisivas e públicas” e que a gestão gaúcha sabia que os pedidos “são descabidos”.
— O governo federal depositou o valor no fim de dezembro e faria as obras com os municípios, mas o governador pediu em outubro para o presidente Lula que o estado assumisse a execução. Para nossa surpresa, seis meses depois, o governo do estado sequer tinha encaminhado a forma de contratação das empresas para atualizá-los — criticou.
O fundo também foi usado pela bancada do PT na Assembleia Legislativa para atacar Leite. “Com dinheiro disponibilizado desde o final de 2024 pelo Governo Lula para as obras de contenção das cheias na Região Metropolitana, Eduardo Leite não se mexeu para elaborar os projetos necessários”, disseram os parlamentares, em nota. Em um balanço das obras de reconstrução, na semana passada, Leite acusou os petistas de usarem a questão “de forma desonesta com interesses meramente eleitorais”.
— A bancada do PT fez um ataque injusto e desonesto de que o dinheiro está parado porque o governo não se move para apresentar projetos. É uma mentira — afirmou. — É de conhecimento do governo federal que o estado está buscando a atualização dos projetos que vão acessar esses recursos do fundo de combate às enchentes.
Enquanto o governador e petistas brigam, atingidos pelas cheias ainda não conseguiram se recuperar do desastre. Líder do Quilombo dos Machados em Porto Alegre, Rogério Machado, de 43 anos, diz que parte de sua comunidade de 1,2 mil pessoas, em que cem famílias perderam tudo, ainda tem de contar com doações.
— Algumas famílias receberam o Auxílio Reconstrução de R$ 5,1 mil, mas não foi suficiente. É impossível esquecer o que ocorreu, e triste saber que na próxima chuva forte pode acontecer tudo de novo. Os bueiros seguem entupidos — lamenta Rogério.
O governo do Rio Grande do Sul aponta que 383 pessoas que perderam suas casas vivem em abrigos públicos em oito cidades, e os centros humanitários de acolhimento em Porto Alegre e em Canoas têm 350 pessoas. Essas “cidades provisórias” devem ser fechadas em maio, e os acolhidos irão para moradias temporárias do estado. Mas especialistas avaliam que o número de desabrigados é subnotificado, alegando não houve uma busca das prefeituras para identificar aqueles que perderam suas residências, mas não foram para abrigos.
Muitos que se refugiaram em casas de parentes e amigos esperam programas de habitação dos governos federal e estadual, que enfrentam um descompasso entre oferta e demanda, para o professor de planejamento urbano Eber Marzulo, da UFRGS. Marzulo afirma que a ausência de dados sobre a situação dos domicílios nas áreas atingidas prejudicou o funcionamento dos programas:
— Muitos não tiveram acesso aos recursos por não se enquadrarem nos critérios socioeconômicos dos programas, por falta de clareza sobre os critérios de seleção, ou por não terem ainda sido incluídos nas listas preparadas pelas prefeituras — avalia Marzulo.
Voluntário nos resgates de moradores de Porto Alegre que ficaram isolados na enchente, o empresário Ivolar Correa, de 37 anos, conta que até hoje vê pessoas da região do Arquipélago de Porto Alegre, bairro distribuído em 16 ilhas onde rios como o Jacuí se encontram no Lago Guaíba, tentando retornar à normalidade:
— Com ajuda de amigos e de empresas consegui recuperar os equipamentos da minha firma de eventos e reorganizar minha casa em cerca de três meses. Mas conheço gente que ainda aguarda indenização. É uma reconstrução diária e muitos ainda temem perder tudo novamente. Não sabemos se as ações da prefeitura e do estado são eficientes.
