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Trump já ameaçou usar a lei anteriormente, mas agora está mais disposto do que no passado a encontrar argumentos que a justifiquem.
— Eu faria isso se fosse necessário. Até agora não foi necessário. Mas temos uma Lei de Insurreição por um motivo — disse na segunda-feira, no Salão Oval. — Se eu tivesse que promulgá-la, eu faria isso. Se pessoas estivessem sendo mortas e tribunais estivessem nos impedindo, ou governadores ou prefeitos estivessem nos impedindo, claro, eu faria isso. Quer dizer, eu quero garantir que as pessoas não sejam mortas. Temos que garantir que nossas cidades sejam seguras.
Como outros instrumentos legais resgatados por Trump em seu segundo mandato, a Lei da Insurreição foi estabelecida nos turbulenos anos pós-Independência, quando os Estados Unidos ainda buscavam algum tipo de coesão nacional. Ela dá ao presidente o poder de mobilizar as Forças Armadas e a Guarda Nacional para suprimir atos de violência e garantir o cumprimento da lei em qualquer local do país — a legislação é a principal exceção à Lei Posse Comitatus, de 1878, que restringe o uso de militares contra civis.
“A invocação da Lei da Insurreição suspende temporariamente a regra da Posse Comitatus e permite que o presidente envie militares para auxiliar as autoridades civis na aplicação da lei. Isso pode envolver qualquer ação dos soldados, desde a execução de uma ordem judicial federal até a repressão de uma revolta contra o governo”, explica Joseph Nunn, conselheiro legal do Centro Brennan, uma organização voltada à discussão de políticas públicas, em artigo publicado em junho de 2022.
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O texto determina que a invocação só deve ser feita em três circunstâncias: a pedido de autoridades de um determinado estado para suprimir uma insurreição local; para enfrentar uma insurreição em determinado estado quando as condições tornem “impraticável” a aplicação das leis locais; ou para enfrentar uma insurreição ou um cenário de violência doméstica que impeça a aplicação e a proteção de direitos constitucionais.
Como detalhou Nunn, essa é uma das mais potentes ferramentas legais à disposição de um presidente, e que foi usada 30 vezes desde sua criação.
Em 1831, Andrew Jackson a invocou para resolver uma disputa fronteiriça com o México, em uma área do estado do Arkansas. Em 1861, foi a vez de Abraham Lincoln recorrer à lei diante da secessão de sete estados do sul dos EUA e do início da Guerra Civil. Ulysses Grant também a invocou, em 1871, para combater a violência da Klu-Klux-Klan, a mais conhecida organização supremacista branca do país — ele a usou outras cinco vezes.
No Século XX, Woodrow Wilson recorreu à Lei da Insurreição para encerrar um impasse liderado por mineiros no Colorado, em 1914, e Franklin Roosevelt, em 1943, a invocou para mandar a Guarda Nacional para Detroit, no Michigan, onde tensões raciais e racionamentos de tempos de guerra eclodiram em protestos, saques e atos de violência. Duas décadas depois, em 1967, e também em Detroit, Lyndon Johnson atendeu ao pedido do governador e enviou soldados para conter confrontos de rua envolvendo a população afro-americana e a polícia local.
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O último presidente a invocá-la foi George H.W. Bush, diante dos confrontos nas ruas de Los Angeles que se seguiram à absolvição de quatro policiais que espancaram o funcionário da construção civil Rodney King, um homem negro, em 1992.
No caso de Trump, a ideia de recorrer à legislação não é nova. Em 2020, durante os protestos contra o racismo estrutural nos EUA — Vidas Negras Importam —, o republicano sugeriu que usaria todos recursos federais disponíveis, “civis e militares”. A então secretária de Imprensa, Kayleigh McEnany, disse que “a Lei da Insurreição é uma das ferramentas disponíveis”. e que “se o presidente decidir adotar essa medida, é prerrogativa dele”.
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Decisões da Suprema Corte de fato garantem ao presidente a palavra final, mas não impedem que seja questionado nos tribunais, embora o caminho seja complexo e sem regras claras. E os militares também podem ser punidos
“Mesmo nos casos em que os tribunais não questionem a decisão de mobilizar tropas, a Suprema Corte esclareceu em Sterling v. Constantin (1932) que os tribunais ainda podem revisar a legalidade das ações militares após o mobilizamento”, escreveu Nunn. “Em outras palavras, as tropas federais não têm liberdade para violar outras leis ou atropelar direitos constitucionais apenas porque o presidente invocou a Lei da Insurreição.”
A possibilidade da invocação voltou no segundo mandato de Trump, com o presidente mais disposto a ampliar a presença de militares nas ruas e a assumir funções que, nos últimos séculos, não foram diretamente da Casa Branca. Em junho, ele determinou que a Guarda Nacional da Califórnia atuasse em protestos contra a política migratória do governo federal, contra a vontade das autoridades locais. Em agosto, as tropas começaram a chegar às ruas de Washington, após Trump afirmar que a cidade enfrentava uma onda “sem precedentes” de crimes (algo também questionado localmente).
Todos os locais citados — Califórnia, Los Angeles e Washington — são comandados por democratas.
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Agora, Trump determinou o envio de tropas para Chicago, em Illinois, e Portland, no Oregon — também governadas pelo Partido Democrata —, alegando violência fora de controle e citando a presença de simpatizantes do movimento Antifa, ou antifascista, incluído na lista de organizações terroristas domésticas nos EUA. As duas cidades registram protestos contra a política migratória de Trump, o que enfureceu o presidente.
— Isso não é um protesto pacífico — afirmou, na semana passada, a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, se referindo à situação em Portland. — Isso é uma anarquia de esquerda que vem destruindo uma grande cidade americana há anos.
Ele sofreu ao menos uma derrota nos tribunais: no sábado, uma juíza federal do Oregon — indicada pelo republicano em seu primeiro mandato — barrou temporariamente a presença dos militares no estado, dizendo “não ver justificativa” para tal. Os governos de Chicago e do estado de Illinois também entraram com ações para impedir a chegada das tropas, mas caso a Lei de Insurreição seja invocada, a batalha legal provavelmente entrará em terreno desconhecido.
“A falta de padrões claros na própria Lei da Insurreição […] criou uma situação em que o presidente tem poder de decisão quase ilimitado para mobilizar tropas federais em casos de distúrbios civis”, escreveu Nunn em 2022. “Os Estados Unidos mudaram profundamente nos 150 anos desde a última emenda à Lei da Insurreição, assim como as capacidades das autoridades civis estaduais e federais e as expectativas do povo americano. A Lei da Insurreição — sem dúvida o mais poderoso dos poderes emergenciais do presidente — deve refletir essas realidades.”