O jovem intelectual que sacudiu a Belo Horizonte dos anos 1960 com sua atuação no teatro (e nos bares). O ator do cinema udigrudi. O ferino, irreverente e inventivo jornalista, pioneiro jamais igualado da imprensa rock brasileira. O produtor do Barão Vermelho que ignorava detalhes técnicos, bebia no estúdio e dizia se a faixa estava boa se ela o fizesse dançar. O parceiro da banda (e do vocalista Cazuza, em carreira solo) em canções e noitadas.
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Tudo que Ezequiel Neves (1935-2010) não merecia era um documentário careta.
— O cara ia puxar meu pé, ia aprontar alguma sacanagem comigo dormindo (se fizesse isso) — benze-se Rodrigo Pinto, diretor de “Ninguém pode provar nada — A inacreditável história de Ezequiel Neves”, que estreia este domingo, na Mostra Retratos do Festival do Rio, em sessão às 21h30, no Estação Gávea.
Fundador do Barão, Roberto Frejat lembra de quando conheceu Ezequiel (Zeca Jagger, para os íntimos ou não tão íntimos assim), no começo dos anos 1980. Trabalhando como produtor da gravadora Som Livre (cujo presidente era João Araújo, pai de Cazuza), o jornalista enfrentou a resistência do chefe e decretou que aquela banda de garagem de garotos da Zona Sul carioca era o suprassumo do rock e tinha que ser contratada.
— Minha primeira pergunta para ele foi: “Você é o Ezequiel Neves que escreve e que eu leio há muito tempo?” E ele: “Sim, garotinho, mas ninguém pode provar nada!” Com essa frase, eu o entendi para sempre — emociona-se Frejat, para quem Zeca foi um dos poucos mentores que teve. — Ele tinha uma coleção de discos sensacional e era muito inteligente, com uma quantidade de informação muito grande. Me ensinou uma das coisas mais importantes da vida, que é você não se levar a sério.
Rodrigo passou por uma experiência diferente no primeiro contato com o produtor, nos anos 1990, quando lhe enviou a fita demo de sua banda de rock, O Berro:
— Ezequiel me chamou na casa dele e falou: “Isso é a maior merda que eu já ouvi na minha vida” (risos). A gente acabou se aproximando. Ele produziu um disco da banda e acho que foi o maior fiasco da vida dele. Mas a gente ficou superamigo.
Zeca levava Rodrigo a tiracolo em todos os shows. Assistiram aos de Lou Reed, em 1996, e de Nina Simone, em 2000 (“vi o Ezequiel arrancar o arranjo de flor de plástico da mesa e entregar para ela, aos prantos”). O rapaz ajudou o amigo e o baterista do Barão, Guto Goffi, a organizar o livro biográfico da banda (“Por que a gente é assim?”, de 2007). Passava as tardes no apartamento de Ezequiel, na Ladeira Saint Roman, em Copacabana, com um computador de segunda mão, anotando os depoimentos. Depois de um tempo, começou a fazer assistência de direção para TV.
— Em 2005, cheguei na casa dele com equipamento de filmagem e ele perguntou: “Vai me entrevistar?” E eu: “Não, deixa ser metido, pretensioso!” Zeca caiu na gargalhada e disse: “Ah, agora vai ter que me entrevistar!” Percebi que ele tinha um pouco o desejo de ficar falando retrospectivamente os seus absurdos. Por causa do Toninho (que é como Ezequiel se referia ao tumor cerebral que o mataria), em 2010 ele não conseguia mais falar direito e aí a gente parou. Eu já tinha umas 60 horas de entrevista.
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Logo no começo, Rodrigo sacou que não dava para confiar na veracidade de 100% (na real, de bem menos do que isso) daquilo que Ezequiel dizia. Eram as histórias do agitador cultural que se orgulhava de ter montado em BH peças de Samuel Beckett que tinham estreado uma semana antes na off-Broadway. Do crítico que inventou um disco solo do stone Keith Richards e, nas colunas para revistas, colava rostos de astros de rock em suas fotos de noitada (“Uma noite maravilhosa com o Sting, tomando champanhe”).
Para Rodrigo, Ezequiel só podia ser retratado em um filme que refletisse um pouco sua forma de produzir, baseada em fatos, mas recriada ficcionalmente. Não à toa, o ator Emílio de Mello interpreta o jornalista em algumas cenas, repetindo seu papel em “Cazuza — O tempo não para”, de 2004).
— A gente achava isso um barato, e veio essa ideia de fazer também o desdoc, a desconstrução do documentário. E esse des também é de qual era o desejo do Ezequiel. Resolvemos documentar o desejo em vez do fato — explica o diretor.
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Rodrigo fez algumas divertidas falsificações de imagens de arquivo e usou a inteligência artificial para recriar algumas situações, “criar outras que deveriam ter existido” e melhorar cenas de época.
“Mesmo discordando de muitas de suas avaliações”, Ezequiel era o ídolo do então aspirante a jornalista musical Antonio Carlos Miguel, leitor de seus textos na versão brasileira da revista americana Rolling Stone, editada entre 1972 e 73.
— Sem saber que The Doors foi quem fez o então jazzófilo virar roqueiro, ofereci um texto sobre o grupo de Jim Morrison. Ezequiel leu e aprovou. Empolgado, contei que trabalhava numa revista de contos, perguntando se ele também fazia literatura. A resposta veio em voz alta: “Garoto, tudo o que eu escrevo é ficção!” — recorda-se Miguel.
Cazuza foi uma revolução na vida de Ezequiel, conta Rodrigo (que organizou para a editora Máquina de Livros uma antologia com cerca de 300 textos do jornalista).
— Sempre brinco que ele e o Ezequiel eram unha e carne, mas com um pequeno twist: unha na carne — diz. — Várias vezes, o Ezequiel alçou pessoas ao precipício, para um voo lindo e turbulento, como foi com o Cazuza e com a Cássia Eller. Se você estava na beira do precipício, em dúvida, ele era esse cara que te empurrava.
Para Frejat, Cazuza (que morreu em 7 de julho de 1990, exatos 20 anos antes do parceiro) foi o redator do que Ezequiel queria dizer musicalmente.
— “Por que a gente é assim?” Isso é uma frase do Zeca. “Mais uma dose, é claro que eu tô a fim, a noite nunca tem fim, por que que a gente é assim?” O Cazuza chegou e, pronto, aquilo virou uma música. E “Não amo ninguém”? Cazuza fez a letra em cima de um título. Já no “Codinome Beija-Flor”, Zeca disse: “Cazuzinha não é segundas intenções, é terceiras intenções.” Ele tem crédito de parceria só por causa dessa troca — ilustra Frejat.
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Ao lembrar do Ezequiel homossexual que dizia odiar a cultura gay (“Eu gosto de homem!”, bradava), Rodrigo avalia que era “um cara que viveu um outro tempo”:
— Ezequiel era bem brincalhão sobre a coisa de gênero. Se ele encontrava uma mulher linda e elegante, dizia: “Estou totalmente lésbico” — lembra. — Hoje ele seria uma pessoa controversa, eventualmente cancelada, mas certamente progressista.
“Ninguém pode provar nada” pega leve com o fim da vida de Ezequiel, que, segundo Rodrigo, “foi muito miserável”. Morando num apartamento que tinha sido de Cazuza, com uma porta sem tranca, teve de contar com a ajuda de amigos, como Frejat, para organizar sua vida. Luís Pissorno, o Grão, antigo leitor, foi contratado para cuidar dele nos últimos dois anos de vida.
— O primeiro passo era afastar ele daquele círculo vicioso, das maluquices de droga e das companhias — relata Grão, testemunha de quando Zeca expulsou de seu quarto de hospital, a dias da morte, freiras que entraram para trazer palavras de conforto. — Tinha um rapaz que dizia que era neto dele, mas era meio namorado. Só que naquela época não rolava mais nada. O Zeca já estava assexuado por conta do problema de saúde. A única coisa que eu não consegui mesmo eliminar da vida dele foi a vodca. Ele só dormia se tivesse uma garrafa do lado da cama.