Eu tinha 21 anos, era dezembro de 1992. Estava de férias, tinha acabado de passar para o quarto ano da faculdade de Direito. Estudava, era freelancer do Datafolha, levava uma vida como a de qualquer jovem de 21 anos. Numa noite saí com três amigas para tomar alguma coisa, celebrar o fim de ano. E aí aconteceu. Tomei um drinque num barzinho em Santo André, no ABC paulista, onde moro até hoje, e acabei perdendo a visão. Da mesma forma que as vítimas de intoxicação por metanol que vejo agora na imprensa, a reação não foi imediata. Demorou um dia e meio para eu sentir que não estava bem.
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Todas pedimos a mesma bebida, um drinque de vodca com água de coco. Tomei um, e o outro virou na mesa. Não sei se foi um anjinho que derrubou. Talvez, se eu tomasse esse segundo, não desse tempo de me socorrer. Nunca fui de beber, era muito fraca. Parei por ali, enquanto minhas amigas passaram a tomar cerveja. Quando fui embora do bar, estava tudo bem. Estava dando risada, porque a dose me deixou abestalhada. Era um sábado à noite. Dormi. No domingo, não acordei como de costume. Lembro de ouvir o Faustão na TV. Já eram quatro horas da tarde. Chamei minha mãe e disse que não estava bem. Vomitei muito antes de levantar em definitivo. Eu estava mole, me olhava no espelho e já tinha a visão turva. Achei que era pelo estado alcoólico. Tomei remédio para enjoo e voltei a deitar.
Na segunda-feira, cedinho, pedi para a minha mãe me levar para o hospital. Eu nem conseguia andar, me escorava na minha mãe.
O médico achou que era intoxicação alimentar, porque eu havia comido alguns petiscos, batatinhas. Nem relatei que tinha bebido. Ele me botou para tomar soro. Inquieta, não quis ficar ali. O médico me liberou para seguir me hidratando em casa. Nessa volta, entrei em coma. Foi chegar, deitar e apagar. Minha mãe achou que eu já estava morta.
O médico, chocado, correu para a UTI comigo. Fui entubada, tive parada cardíaca, entrei em choque. Conseguiram me reanimar, mas continuei em coma por uns quatro dias. Na UTI, fiquei mais uns quinze. No total, passei mais de um mês no hospital. Foi bem difícil chegar a um diagnóstico. De início, suspeitavam que fosse uma overdose de alguma droga. Os testes levavam para isso, mas não davam em nada. Na época, eu namorava um médico recém-formado, jovem como eu. Ele sugeriu que poderia ser metanol porque havia estudado, naquele sexto ano de Medicina, um caso com sintomas semelhantes. Ele salvou a minha vida.
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Só aí fizeram teste para metanol, e começou uma corrida contra o tempo. Tomei etanol na veia, como antídoto, e fiz seis sessões de hemodiálise. A essa altura, já tinha perda total da visão. Naquela época, há quase 33 anos, não havia esse protocolo com sinais e sintomas para identificar como caso suspeito.
Quis saber dos médicos por que só eu tive um quadro com aquela gravidade. Pelo que me disseram, como minhas amigas fizeram xixi, não deu tempo de o fígado metabolizar o metanol, como no meu caso. Só me tiraram da UTI quando os exames constataram que não tinha mais a substância no meu sangue.
Quando acordei do coma, não via mais nada. Os médicos diziam para a minha família, em separado, que eu não voltaria a enxergar, a falar, a andar. Mas meu ouvido estava tinindo, era a única coisa que funcionava. Eu ouvia os comentários e me negava a aceitar as informações — não no sentido de entrar em pânico, mas de pensar comigo mesma: “Não. Eu vou ficar bem, vai dar tudo certo”.
Fui acometida de uma confiança, de uma fé. Não sei o que foi. Confio em Deus, bato um papo reto com Ele sempre, e acredito nos propósitos para a gente. Pensei que não tinha cumprido minha missão ainda. Mas a inspiração, a força, veio da minha mãe. Ela é e sempre foi uma mulher muito guerreira. Ficou viúva muito jovem e criou dois filhos sozinha. Na UTI, quando ela entrava pra me ver superfragilizada, aquela coisa de mãe, eu falava: “Não, eu tô bem, eu tô firme”. Na verdade, eu me inspirava nela, naquela força que ela nos ensinou a ter.
As pessoas se dedicaram muito para que eu me recuperasse. Depois desse um mês no hospital, passei a enxergar um pouco do olho esquerdo, entre 15% e 20% da visão periférica. Do olho direito, nada. Desde o início, talvez pela pouca idade ou por ter sido otimista e confiante desde sempre, nunca me deixei abater. Isso nunca me afetou. Nunca pensei aqui: “Ah, agora eu não enxergo”. Lembro de estar na UTI, sem saber ainda por que não estava enxergando e com as mãos amarradas, por causa das convulsões. Eu não podia levar a mão até os olhos. Perguntei para o meu irmão o que eu tinha no olho, e ele disse que era gaze. Ele não queria me contar.
Meu irmão então me disse que tinha ido ao hospital me avisar que trancaria a minha matrícula na faculdade. Já era janeiro de 1993, as aulas estavam para recomeçar. Eu falei: ‘Não tranca. Eu vou tentar assim mesmo’. O meu objetivo era seguir, do jeito que fosse: cega, sem andar. O prognóstico, naquele momento, era terrível. No início, fiquei sem andar e sem falar, mas isso eu até recuperei de forma rápida, com fisioterapia e fonoaudiologia.
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Ao voltar para a faculdade, tive uma rede de apoio dos meus amigos e professores. Meus professores permitiam que eu gravasse as aulas, alguns até colocavam o gravadorzinho no bolso do paletó. Meus colegas de classe também gravavam, liam os textos em voz alta, estudavam comigo. Fazia provas orais. O meu irmão chegou a gravar um estudo também. O professor de Medicina Legal deixou metade da classe de exame final. Tinha de ler o livro inteiro. Pensei: ‘Não vai dar’. Meu irmão gravou e leu trechos para mim. Consegui terminar a faculdade e logo comecei a trabalhar.
Fiquei 12 anos na assistência judiciária do estado. Eu recebia só uma ajuda de custo que era paga nessas ações. Aprendi muito, e aí comecei a direcionar a minha carreira para a Vara da Infância e da Juventude, para a questão das adoções, que é o que eu faço até hoje, com muita alegria de viver, porque tive essa chance de estar viva.
Eu e aquele namorado médico ficamos juntos por mais seis meses, mas ele ficou em Campinas para fazer a residência e acabamos nos distanciando. É uma pessoa que eu levo no coração. Não era à toa que estava comigo naquele momento. Depois, conheci meu ex-marido no fórum, trabalho. Namorei por dez anos e fui casada por mais 17. Não tivemos filhos, mas ainda somos muito próximos. Ele enxerga — como dizem: ele é “normal” — e encarou essa empreitada comigo com toda a tranquilidade. Não teve preconceito, não teve diferença. Passeamos muito, brincamos muito, foi um parceiro de vida.
Nunca mais voltei àquele bar do drinque com vodca. Quando descobriram que era metanol no meu sangue, a polícia foi atrás dos responsáveis. Eram meninos muito bacanas, com quem eu nunca tive problema nem nunca culpei por terem “acabado com a minha vida”. Nem a pau. Eles foram, sim, irresponsáveis, porque compraram a bebida clandestinamente, mas sempre se preocuparam comigo e me deram ajuda financeira por um tempo. O bar continua aberto até hoje. Nunca soube de outros problemas.
Passo em frente às vezes porque é caminho para lugares que eu vou, mas eu não voltei lá. Os donos do bar haviam comprado bebida clandestina de um homem, hoje já falecido, que produzia em um fundo de quintal. Pelas informações do inquérito, ele teria usado, sem saber, um barril de etanol sujo com alguma quantidade de metanol. Foi um crime contra a saúde pública. O pessoal do bar respondeu à Justiça por comprar a bebida clandestina. Não ficaram presos. Já o rapaz que fabricou ficou preso um tempo. Nunca entrei na Justiça contra ele nem tive contato, então não tive reparação. Lembro que fiquei bastante sentida pelo falecimento dele, porque eu soube que ele tinha um filho pequeno.
De lá para cá, mostro para as pessoas que a vida segue. Elas veem que eu não me deixei abalar, não joguei a toalha. Cada um tem as suas dificuldades, e a minha é visual. Aprendi a lidar, a reagir à forma como o outro olha para mim. O preconceito é bastante difícil, mas não entro em embates. Tento mostrar que é bobagem ter preconceito com as minhas atitudes, com a competência na carreira, com o meu modo de viver.
Aquele comentário que a gente ouve, “tadinha”, ele não ajuda, não edifica. Ao mesmo tempo, eu entendo que é ignorância. Já me peguei pensando “tadinha” também em outros casos. Diretamente, nunca perdi trabalho, mas já senti de maneira silenciosa a suposição de que aquele trabalho demandaria muita leitura, que eu não conseguiria. Ficou nas entrelinhas. Eu não entro em embate porque é muito desgastante. Não estou aqui para convencer ninguém. Se não deu aqui, eu vou adiante.
À Radharani Domingos, uma das vítimas recentes e que perdeu a visão, eu diria para procurar recursos, exames específicos, um médico especialista, mas eu diria sobretudo para ela ter força. Isso, ainda que demore para ter um pouco de visão ou que a visão não volte. A vida é maravilhosa, a vida vale. Não pode desanimar. Eu sigo buscando novidades para o meu caso, como no ramo das células-tronco. A Medicina está avançando muito. Pode não dar tempo de um tratamento acontecer comigo, mas uma hora vai acontecer.
A gente sempre pensa que não vai acontecer com a gente. Todo mundo feliz, celebrando. E acontece. A gente precisa tomar cuidado. Qual tipo de cuidado tomar? Não sei. Não beber nunca mais? Não é isso. É ir atrás e buscar o protocolo de saúde se sentir qualquer sintoma. Com essa divulgação dos casos, hoje as pessoas estão sabendo. O profissional do posto de saúde vai saber o que fazer.
Não adianta perder tempo com a pergunta: “Por que comigo?”. Essa resposta talvez venha nas entrelinhas da vida, mas não será clara, explícita. Espero que a minha história inspire e mostre que vale a pena viver, apesar desse absurdo todo.
Depois que eu me divorciei, fiquei um ano sozinha no meu apartamento. No final da pandemia de Covid-19, fui morar com a minha mãe, viúva do meu padrasto. Meu irmão tinha vindo ficar com ela por causa da pandemia. Voltamos a morar juntos, os três, depois de mais de 30 anos. Na última segunda-feira, fiz 54 anos, mas dizem as boas línguas que aparento ter 40. Eu acredito.
*Em depoimento à repórter Júlia Cople