Conhecidos como “panelas”, os grupos fechados em redes sociais usados para produção e consumo de conteúdos de extrema violência têm funcionado como hubs criminais, em que adolescentes são cooptados para cometerem uma série de delitos. Na última quinta-feira, a Polícia Civil de São Paulo, em parceria com órgãos de outros estados, apreendeu oito jovens integrantes dessas comunidades, apontados como responsáveis por realizar e incitar ataques a moradores de rua, estupros virtuais e automutilações.

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As panelas funcionam em especial no Discord, plataforma de mensagens frequentada por praticantes de games, mas têm ramificações em redes como o Telegram. Elas reúnem criminosos digitais especializados em diferentes ilicitudes. Além das práticas violentas, a venda de dados pessoais e as fraudes de cartões de crédito — ações antes restritas à chamada dark web — também são observadas por pesquisadores e delegados.

Na operação de quinta-feira, um adolescente brasileiro que mora na França foi apontado como financiador e orquestrador de agressões a moradores de rua. Com boa condição financeira, ele oferecia dinheiro para membros das panelas praticarem automutilação e violência contra vulneráveis.

Conversa em panela — Foto: Reprodução

O cumprimento de desafios é uma prática antiga nos grupos, mas os pagamentos são recentes. No caso desse jovem que vive na Europa, a delegada Lisandréa Salvariego, coordenadora do Núcleo de Observação e Análise Digital da Polícia Civil, explica que o uso de recursos financeiros era uma forma de o rapaz alcançar prestígio nas panelas.

— Ele visava ao poder, adorava ser temido — diz Salvariego.

Flávio Rolim, chefe da unidade de repressão a crimes cibernéticos de ódio da Polícia Federal, explica que alguns paneleiros miram também em ganhos financeiros, ao pagarem pela produção de materiais de abuso.

— Eles entenderam, infelizmente, que esse tipo de material pode ser vendido posteriormente. Os valores oferecidos passam de R$ 1 mil — afirma.

As transações ocorrem por transferências bancárias e Pix, mas também com a moeda virtual Robux, usada na plataforma de jogos Roblox. O ativo digital é restrito para uso dentro do universo dos games e não pode, na maioria dos casos, ser convertido em reais, mostrando a alta adesão dos jovens do Roblox às panelas.

Conversa em panela — Foto: Reprodução
Conversa em panela — Foto: Reprodução

— É muito comum o uso da moeda Robux. Os jovens ficam 24 horas nesses jogos (hospedados na plataforma). Por vezes, para eles, (o Robux) é visto como mais valioso do que dinheiro — salienta Salvariego.

Procurada, a Roblox informou que as condições para a transferência de saldo de Robux não são livres na plataforma. A empresa afirma que o uso de serviços de terceiros para comprar, vender, trocar ou distribuir Robux é proibido. Segundo a nota, a Roblox investe em “tecnologias de segurança avançadas para bloquear conteúdos impróprios”.

Já o Discord diz, em nota, que conta com equipes dedicadas a “identificar e remover usuários mal-intencionados que estejam se organizando em torno de ideologias de ódio”. A empresa acrescenta que investe em ferramentas avançadas de segurança e denuncia violações às autoridades policiais.

Além da Roblox, adolescentes são fisgados em plataformas como TikTok e Kwai, observam autoridades. O Telegram também é usado para compartilhamento de conteúdos ilícitos e organização dessas comunidades.

Conversa em panela — Foto: Reprodução
Conversa em panela — Foto: Reprodução

As panelas chamaram a atenção pela violência observada nas transmissões ao vivo, também apelidadas de “lulz“, nome dado aos atos de crueldade vistos como entretenimento pelos integrantes. Além das lives, outros crimes rodam nos chats. Leandro Louro, pesquisador da Universidade Federal do Rio (UFRJ), frisa que esses espaços se tornaram verdadeiros “hubs criminais”.

— Você vê todo tipo de esquema, desde comercialização de notas falsas a cartões clonados. Eles usam habilidades de programação para praticar extorsão e obrigar (os jovens) a fazerem o que quiserem. Chamam isso de “ter um escravo” — explica.

Um dos alvos da operação da semana passada era especializado nessas práticas. Salvariego narra que um menor de 17 anos, que mora em Pernambuco, foi mentor intelectual de atos de violência que fizeram ao menos 200 vítimas e era especialista na invasão de sistemas bancários.

— Ele fazia dívidas nos cartões de crédito dos pais das vítimas — conta.

Rolim lista outras atividades, como o compartilhamento de manuais suicidas e que ensinam a confeccionar bombas.

“Naquele ambiente, claramente houve uma maturação criminal de várias pessoas”. A fala é de um jovem de 20 anos, estudante de Direito que viu o surgimento das panelas no Discord, em especial durante a pandemia, e se afastou quando a brutalidade extrema virou regra. “O cara começa com coisas como racismo e ameaças e depois está armazenando e compartilhando pornografia infantil, torturando animais”, descreve.

Outro rapaz, de 18 anos, que no último ano deixou de participar dos grupos, conta que impera um desejo de reconhecimento, como aparecer em canais do YouTube dedicados a contar a história de usuários conhecidos pela crueldade. “Olham como a oportunidade de ganhar um cargo”, diz.

— É um projeto misantrópico, um ódio a todos, à sociedade como um todo. Esses adolescentes têm traços de antissocialidade e um desprendimento das leis, uma predisposição para cometer crimes, seja lá qual for — destaca Louro.

O psiquiatra forense Hewdy Lobo Ribeiro aponta que é possível observar um padrão entre os adolescentes cooptados por grupos extremistas. De um lado, existe a figura dos que exercem papéis de liderança e, do outro, os que são manipulados.

— Os líderes tendem a ser pouco executores e mais ordenadores. São crianças e adolescentes com incapacidade de empatia, de se colocar no lugar do outro — avalia o médico.

Ribeiro observa que a maioria dos que ingressam nos grupos, quando percebe o grau de violência das comunidades, opta por deixar as panelas. Os que se tornam frequentadores, por opção ou ameaças, costumam apresentar sinais que podem servir de alerta a todos os pais, como mudança abrupta no desempenho escolar, diminuição do tempo disponível para a família, perda de interesse em atividades de lazer externas como esportes e oscilações no humor.

O TikTok informa que monitora os conteúdos que direcionam usuários a grupos extremistas. A empresa alega que remove publicações que incitam comportamentos abusivos, incitação a assédio e outras práticas. O Kwai diz que conta com moderação 24 horas e combina ferramentas de inteligência artificial com análise humana para moderação. Já o Telegram afirma que conteúdos ilegais são removidos sempre que descobertos.

Grupos fechados nas redes, ‘panelas’ viram focos de crimes com cooptação de adolescentes