Arquiteta e paisagista americana Sara Zewde construiu uma forte relação com o Rio, iniciada há 15 anos, quando chegou à cidade para atuar numa ONG de seu país que prestava consultoria para a prefeitura na área de transporte urbano. Naquela ocasião, morou na Glória. Depois de um ano e meio, voltou para sua terra, onde se tornou professora de Harvard e abriu um escritório de arquitetura no Harlem (que considera sua Pequena África em Nova York), mas nunca cortou os laços cariocas. Desde então, a filha de pais etíopes, hoje com 39 anos, viaja para cá todo verão, para passar ao menos seis semanas.
- Nova regra: Usuários de gratuidade relatam experiências distintas no primeiro dia da obrigatoriedade do Jaé
- Caso Juliana Marins: entenda por que família desistiu de cremar jovem que caiu em vulcão na Indonésia
Por aqui, um de seus programas favoritos é frequentar rodas de samba. Essa conexão com o Rio pode se tornar ainda mais forte depois que o trabalho de sua equipe, que tem por característica desenvolver projetos que dialogam com a diáspora africana, saiu vencedor num concurso promovido pelo BNDES e voltado para arquitetos e urbanistas negros, que deveriam apresentar propostas para integrar o Distrito Cultural da Pequena África, na Zona Portuária. Em entrevista ao GLOBO, Sara conta o que propõe para a região e como é sua ligação com a cidade:
Como foi para você participar do concurso que estava selecionando projetos para requalificação da Pequena África e qual é sua relação com a região?
Essa história, na verdade, começa há 15 anos. Eu morava aqui quando o Cais do Valongo foi redescoberto (em 2011, após escavações para revitalização da Zona Portuária) e desde lá estou envolvida nessa questão sobre a Pequena África e o potencial que ela representa para falar sobre a diáspora africana. Em 2010, eu fazia parte de um grupo de trabalho criado pela prefeitura e, em 2014, ganhei uma bolsa de uma fundação nos Estados Unidos. Com isso, trabalhava desenvolvendo ideias para a Pequena África ainda junto daquele grupo. (Depois disso) Me tornei professora em Harvard, a primeira pessoa preta do Departamento de Arquitetura Paisagística da universidade em 125 anos, e lá criei o laboratório Harvard University Pequena África Initiative (Iniciativa da Universidade de Harvard e Pequena África). Em 2018, fundei um escritório de arquitetura paisagística, onde nós trabalhamos em projetos executivos ao redor do mundo focados nas paisagens culturais da diáspora africana.
De que lugar dos Estados Unidos você é e como isso te influenciou?
Nasci no Texas e cresci perto de Nova Orleans, em Louisiana. Foi o furacão Katrina (ocorrido em 2005) que atraiu meu interesse por questões de arquitetura e ecologia e como essas habilidades podem ser utilizadas para contar as histórias da diáspora africana. Somos 15 pessoas no escritório que fica no bairro do Harlem, que eu digo que é a Pequena África de Nova York. Com o laboratório que criei em Harvard, no ano passado a gente fez um workshop aqui na Pequena África com moradores da área para debater ideias para a região.
Isso sem saber ainda que haveria esse concurso (do BNDES)?
Não sabia de nada disso. Eu sempre achei que o potencial da Pequena África representa algo para o mundo sobre como a gente pode contar essas histórias profundas no espaço público.
E como você descobriu o edital?
Muitas pessoas que conheciam esse meu trabalho me ligaram. Tem muita burocracia para um escritório estrangeiro entrar num concurso assim, e no início eu não sabia como participar. Mas fiquei muito interessada em implementar o projeto. Por isso, entrei.
Como começou essa sua relação de 15 anos com a cidade? Como você chegou aqui?
Eu trabalhava (nos EUA) com uma ONG chamada Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), cujo escritório no Brasil prestava consultoria para a Prefeitura do Rio no planejamento do sistema de transporte. Eu trabalhava nesse planejamento na Zona Portuária.
Sua familiaridade com o Rio e a Pequena África facilitaram de alguma forma a elaboração do projeto?
Eu trouxe todas as conversas, acontecimentos e sonhos das pessoas que ouvi, todas as pesquisas e todas as minhas evoluções como arquiteta e coloquei nessa proposta que desenvolvi em seis semanas.
Conte um pouco do seu projeto. O que você propôs para revitalizar e transformar essa região ?
O epicentro do projeto é o Cais do Valongo. Nossa proposta começa com uma descida potente, ancorada pelas Docas de D. Pedro (onde hoje fica o galpão do Ação da Cidadania) e pela presença da árvore baobá (perto da Avenida Venezuela). A partir desses dois elementos, uma travessia elevada, um caminho amplo, desce de forma deliberada, guiando o visitante por uma inclinação suave (5%) até a base do sítio arqueológico. A descida é física e simbólica: uma jornada pelas raízes do baobá até as profundezas da história. A chegada ao cais é marcada com dramaticidade intencional, revelando vistas amplas da arqueologia exposta e, ao mesmo tempo, melhorando sua acessibilidade.
Saindo do Cais do Valongo, o que o projeto propõe?
O projeto chega à Rua Sacadura Cabral, onde propõe um padrão de pavimento para as calçadas num formato trançado representando as conexões entre os dois continentes (africano e sul-americano), acoplado a um projeto paisagístico, também com plantio de árvores como a figueira. Além disso, propõe intervenções no Largo do Propósito, em frente aos jardins do Valongo e também na Praça da Harmonia, onde a ideia é organizar o espaço.
O concurso internacional organizado pelo BNDES e vencido pelo escritório de Sara Zewde faz parte de um projeto mais amplo que prevê a estruturação do Distrito Cultural da Pequena África, ligando pontos históricos como a Pedra do Sal, o Cais do Valongo (Patrimônio Mundial da Unesco desde 2017), o Jardim Suspenso do Valongo, o Largo da Prainha, o Museu da História e Cultura Afro-Brasileira, o Cemitério dos Pretos Novos e a Casa da Tia Ciata. A intenção é potencializar esse legado da memória negra na cidade por meio de intervenções urbanísticas, novos equipamentos culturais e ações de inclusão social.
O edital, lançado em março, era direcionado a arquitetos e urbanistas negros. O resultado foi divulgado há duas semanas e distribuiu uma premiação em dinheiro no valor de R$ 130 mil para as três melhores propostas, além de conceder duas menções honrosas.
Segundo Felipe Guerra, sócio do escritório Jaime Lerner, que lidera o consórcio responsável pela coordenação técnica do distrito, os próximos passos são fazer um análise das propostas para depois, junto com as equipes vencedoras, avaliar como fazer a costura das ideias apresentadas:
— São cinco projetos conectados com as ideias que já vínhamos trabalhando.
Marcos Motta, assessor da presidência e coordenador da Iniciativa Valongo do BNDES, explica que um dos objetivos é criar identidade visual e urbanística única para a região, além de novos equipamentos voltados para cultura, educação e capacitação.
— Isso tudo vai criar um museu a céu aberto, para que se possa fazer a preservação da memória africana.
O banco é responsável pelos estudos e pela estruturação do projeto, nos quais está investindo R$ 7 milhões. A decisão sobre a execução caberá ao grupo formado por representantes de ministérios, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e da prefeitura.