A cada nova ofensiva das Forças Armadas de Israel na Faixa de Gaza, Anat Angrest vê se prolongar o calvário que toma conta de sua vida há quase dois anos, quando seu filho, o soldado Matan Angrest, foi sequestrado por integrantes do Hamas e levado para o enclave palestino. A aflição que a acompanha desde aquele 7 de outubro de 2023 parece ter lhe dado uma trégua na última sexta-feira, quando o grupo se mostrou disposto a libertar todos os reféns vivos e entregar os corpos dos mortos que ainda estão no enclave. Enquanto a mãe vive em compasso de espera, Matan completou seus 22 anos em cativeiro.
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A angústia das famílias israelenses permanece, passados dois anos de guerra. Entre acordos políticos momentâneos, que não evoluíram para uma solução definitiva, e uma guerra levada adiante pelo governo de Benjamin Netanyahu de forma impassível — com mais de 67 mil palestinos mortos em Gaza, em sua maioria civis — Israel viu derreter o apoio interno e internacional à sua resposta ao Hamas, o que resultou em medidas que cada vez afetam mais diretamente judeus israelenses e na diáspora, sejam eles contra ou a favor da guerra.
Uma nova onda de sanções ganhou força na Europa nos últimos meses, sobretudo após a declaração de fome na Cidade de Gaza e a classificação da guerra em curso como genocídio por parte de cada vez mais organizações e intelectuais. A Comissão Europeia colocou em votação um projeto que pode retirar benefícios fiscais concedidos a Israel para o comércio com o bloco, enquanto entidades culturais e esportivas estudam banir artistas e esportistas israelenses de palcos e arenas internacionais.
Em um artigo de opinião publicado no jornal Haaretz, o escritor judeu Dani Bar On narrou uma série de episódios enfrentados por ele e outros israelenses que conheceu durante uma recente viagem de férias à Europa, em que todos foram alvo de algum tipo de constrangimento por sua nacionalidade ou identidade judaica.
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“Essa viagem marcou um divisor de águas para mim. Foi a primeira vez que me senti tão indesejado fora de Israel”, escreveu Bar On. “Entre certos segmentos das populações locais e estrangeiras com quem cruzamos […] já não era mais possível dizer ‘sou de Israel’ sem que essas palavras engasgassem na garganta, ou sem que surgisse um silêncio pesado, que exigia explicações, esclarecimentos ou pedidos de desculpa.”
O escritor, que se coloca como opositor de Netanyahu e participante das manifestações pelo fim da guerra, revelou frustração pelo estigma enfrentado — em um caso específico, um italiano se recusou a alugar uma bicicleta a ele por causa de um “boicote” a Israel pela guerra —, mas afirmou ter sentido diferença entre um episódio de antissemitismo que sofreu anos antes e o que viu no contexto atual: agora, as situações pareciam ter influência direta da guerra.
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Fazer uma distinção entre casos de constrangimento enfrentados por israelenses e judeus em consequência do conflito atual e aqueles movidos por sentimento antissemita é tarefa quase impossível. Relatórios de órgãos oficiais do governo e de organizações de sociedade civil e universidades do país são unânimes ao apontar uma disparada de incidentes antissemitas desde 7 de outubro de 2023. Os episódios, que vão desde manifestações on-line até atentados contra múltiplos alvos, saltaram até 400% em alguns países. O mais recente aconteceu há poucos dias, quando um ataque a uma sinagoga deixou dois mortos em Manchester, na Inglaterra, no meio do feriado judaico de Yom Kippur.
A ex-diplomata israelense Revital Poleg, integrante da equipe de negociação dos Acordos de Oslo com os palestinos nos anos 1990, afirmou em entrevista ao GLOBO que é importante reconhecer que o antissemitismo é um fenômeno com raízes profundas, que se expressa há séculos, mesmo antes do Holocausto, e atinge judeus israelenses e não israelenses.
Mas ela reconhece que as ações do governo estão relacionadas à erosão da imagem do Estado judeu — embora não tenha influência direta na questão mais ampla.
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— Como israelense, nascida aqui, sempre que cheguei em qualquer lugar do mundo, cheguei orgulhosa. Eu não saí de Israel desde o começo da guerra, mas muitos amigos agora têm medo quando estão fora. Já não usam quipá, camisetas com palavras em hebraico, tentam não falar em hebraico na rua… — afirma, ponderando: — O antissemitismo é muito anterior à guerra em Gaza. Os atos do governo fazem crescer uma raiva, amplificam uma rejeição, mas não são responsáveis pelo antissemitismo.
A avaliação da diplomata é que Israel vem sofrendo derrotas para o Hamas no campo da diplomacia pública, que permitiu que grupos antissemitas se propagassem mesmo antes da guerra. Um relatório da Universidade de Tel Aviv, que analisou dados de 2023 e 2024, registrou que os casos de antissemitismo tiveram um pico imediatamente após o ataque, em uma possível correlação com esses grupos. O número segue elevado se comparado ao período anterior à guerra.
Uma pesquisa do Pew Research Center em 24 países e divulgada em junho indica que a imagem do Estado judeu já estava prejudicada antes da resposta ao ataque: em apenas três dos países — Índia, Nigéria e Quênia — a visão positiva sobre Israel era maior do que a negativa entre os entrevistados. O levantamento considerou países tão diversos quanto EUA, Japão, Alemanha, Austrália e Brasil — onde 58% disseram ter uma imagem negativa do Estado judeu, e 63% afirmaram não confiar em Netanyahu. O estudo ainda aponta que a pergunta tinha sido feita em pesquisas anteriores em 10 dos países, e que em sete houve um “aumento significativo” do percentual de desaprovação.
Outro estudo, realizado pelo historiador João Miragaya, mestre pela Universidade de Tel Aviv e colaborador do Instituto Brasil-Israel (IBI), aponta que as pesquisas de opinião do país captam há mais de um ano uma mudança de posição dos israelenses sobre a continuidade da guerra em Gaza — que era quase uma unanimidade logo após o atentado. Analistas políticos israelenses apontam que a discrepância entre as decisões do governo e a vontade popular alcançou um patamar histórico ao longo da guerra, mas sem os cidadãos conseguirem mudanças mesmo exercendo pressão nas ruas.
— Um primeiro instituto de pesquisa perguntou à população, em setembro de 2024, se ela era favorável a um acordo que trouxesse os reféns de volta, mesmo que colocasse fim à guerra sem que o Hamas fosse derrubado, e mais de 50% se posicionaram a favor. Esse número só aumentou — disse Miragaya. — Em média, dois terços da população israelense estão se posicionando consistentemente desta maneira há um ano.
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O estudante universitário Max Kresch, de 29 anos, é um dos israelenses que mudaram de opinião ao longo da guerra. Médico de combate na reserva do Exército, Kresch deixou de lado as ressalvas que tinha sobre o governo Netanyahu e se apresentou ainda em 7 de outubro de 2023, servindo por dois meses na fronteira com o Líbano. Ao voltar para casa, porém, passou a se posicionar frontalmente contra a guerra e ajudou a fundar o movimento Soldados pelos Reféns, que defende que reservistas se recusem a se apresentar até que o governo chegue a um acordo.
— As mortes e a devastação desenfreadas em Gaza vão empurrar para muito, muito longe, qualquer tipo de progresso em direção à paz ou à resolução justa do conflito. Espero que haja uma chance, que de alguma forma, depois de sairmos desse pesadelo, ainda possamos sonhar com a paz. Mas como podemos esperar avançar com a paz depois de tudo o que fizemos e nem sequer admitimos? É algo que causa danos extremos ao nosso país, ao povo, às próximas gerações — disse Kresch ao GLOBO.