“Estava no auge da minha juventude, aos 19 anos, quando tudo aconteceu, em 1995. Trinta anos depois, aos 49, chegou a hora de ressignificar essa história. Preciso falar sobre esse momento tão determinante na minha vida para me libertar.

Eu e minha família — minha mãe, meu padrasto, meu irmão e os filhos do meu padrasto — estávamos realizando um sonho: em 1994, nos mudamos para uma ampla e confortável casa no Itanhangá, Zona Oeste do Rio. Começava a trilhar minha carreira profissional e estudava Comunicação na UFRJ. Vivíamos um momento feliz.

Era um domingo à noite como outro qualquer. Estava no sótão fazendo um trabalho para a faculdade, quando o silêncio estancou e virou terror. Sete homens encapuzados pularam o muro e invadiram a nossa residência. Meu padrasto havia saído para buscar os filhos numa festa. Eu, minha mãe e meu irmão fomos rendidos e amarrados. Ficamos, deitados de bruços, no chão da sala.

Eles não foram violentos fisicamente, mas, sim, verbalmente, nos ameaçando. Jamais esquecerei a sensação de frio e de medo, eu me tremia inteira sobre a ardósia gelada. Achei que fosse um assalto e mentalizava sem parar que tudo acabaria bem e rápido. Porém, quando meu padrasto chegou, eles disseram: ‘Vamos levar a menina’.

Alguns momentos ficaram cristalizados na memória. Eu me emociono até hoje. Esse foi um deles. Lembro-me da expressão de desespero da minha mãe ao ouvir que eu seria sequestrada. Ela deu um grito visceral. Só agora, que sou mãe, tenho a dimensão do que se passou, consigo me projetar e entender seu olhar.

Os bandidos me pegaram e me jogaram na mala do carro, assim como vemos nos filmes. Antes disso, fizeram a limpa na despensa da casa, armazenando mantimentos numa bolsa velha. Entrei num modo de suspensão e, ao mesmo tempo, tentei ficar ligada em sons, distâncias, sinais que pudessem me situar geograficamente. Senti que não tínhamos saído da Zona Oeste.

Não andamos muito até pararmos diante de uma mata. E a ordem era subir o morro; estávamos eu e quatro sequestradores. Não existia uma trilha. Era preciso, literalmente, escalar a montanha. Comecei a ficar muito, muito assustada. Para onde estavam me levando? Não tinha ideia. Ao chegarmos a um descampado, vi que continuava na Barra. Recomeçamos a subir e fui comunicada que a mata seria o meu cativeiro. Não tinha casebre, casinha nem barraca. Era ao relento mesmo. Eles estenderam algo semelhante a uma canga e mandaram eu ficar por lá. Acabei dormindo, exaurida física e emocionalmente. Durante esse período, mantive um pensamento fixo: achava que tudo acabaria em 24 horas. Por isso, quando, no dia seguinte, pediram o telefone da minha família, entrei em desespero. A negociação nem tinha começado.

No segundo dia de cativeiro, aconteceu um imprevisto que elevou, e muito, a temperatura. Dois homens, um jovem e outro maduro, surgiram do nada, estavam passeando no local. Foram imediatamente rendidos, amarrados e ameaçados de morte. Os dois sequestradores acharam que eles eram da polícia. Fora isso, desabou uma chuva daquelas. Encharcada e amedrontada, eu só rezava.

Quando veio a noite, outros dois sequestradores subiram o morro. Os quatro estavam muito tensos e não paravam de ameaçar os dois reféns, apavorados. Entendi que iriam me transferir para outro cativeiro. Mas nada foi explicado. Me levaram, então, para uma gruta nos arredores desse morro e o líder do grupo falou para mim que, se ele não voltasse até o amanhecer, estaria tudo acabado. Senti ter recebido uma sentença de morte. Passei a noite em claro, rezando e chorando. Antes do amanhecer, o tal chefão regressou e falou que iríamos sair. Soube, depois, que os dois reféns conseguiram sobreviver.

Novamente, fui colocada num carro, desta vez deitada no banco de trás. Seguimos alguns quilômetros, e o pneu furou. Mais tensão. Resolvido o problema, seguimos adiante até entrarmos numa ruazinha. Paramos diante de um casebre em construção, no meio do mato, numa comunidade isolada. Tinha um quarto, uma sala, uma espécie de cozinha e um banheiro, tudo sem porta. Esse ficou sendo o meu cativeiro até o final do sequestro.

Estava encharcada e imunda. Eles me deram, então, uma roupa seca para trocar. O banheiro não tinha porta, chuveiro, pia nem privada. Apenas um balde, com água, e uma bacia, para resolver as necessidades fisiológicas. Fiquei na dúvida se deveria ou não tomar banho, mas estava me sentindo muito suja. Tomei.

O tal casebre estava repleto de caixas de uma mudança roubada pelo bando. Dentro delas, consegui alcançar uma boneca, a qual me agarrei sofregamente, um livro, ‘Meu pé de laranja lima’, que peguei e tenho até hoje, e uma cadeira de praia. Na sala, tinha um colchão de casal estendido no chão. Dormi nele com os dois sequestradores, não havia outro lugar. Não sofri violência sexual. Hoje me pergunto por que aceitei aquilo. Mas penso também que, em situações tão extremas, há alguma nesga de confiança construída; eles também estavam expostos, já que a vizinhança não tinha ideia do que estava acontecendo.

Fiquei nesse cativeiro por seis dias. Era uma segunda-feira quando fui informada de que seria libertada após o pagamento de um regaste que, na época, era de R$ 80 mil. De madrugada, os bandidos saíram para buscar o resgate. Na volta, depois de contarem três vezes o dinheiro, me colocaram no carro e me deixaram perto de um posto de gasolina com 50 reais para pegar um táxi. Ao chegar na minha rua, em lágrimas, pedi para o motorista buzinar. Fui arrancada do carro pela família que me esperava muito emocionada.

Patrícia Koslinski — Foto: Ana Branco

Na primeira noite de volta, no conforto do meu quarto, prometi para mim mesma que aquele episódio não iria me definir. Foi uma decisão madura, mas também ingênua. Hoje, aos 49, sei que não tem como não ser refém de um episódio como esse. A maturidade me fez olhar para dentro. Ser mãe de uma adolescente acordou sentimentos represados. Nesse mergulho, percebi também que a líder que sou hoje deve muito ao que vivi naquela situação: precisei aprender a negociar, ter coragem apesar de sentir medo e a ler contexto, tudo que exerço no trabalho.

Depois de guardar por 30 anos o trauma num cofre blindado, quero virar essa mesa, escrever livro e dar palestra. Criei um perfil no Instagram chamado Cativeiros Invisíveis. Todo mundo tem algo no qual se sente aprisionado. Pretendo, ao compartilhar minha experiência, ajudar. Não quero envelhecer endurecida por essa história. Desejo ser livre.”

jornalista lembra sequestro sofrido 30 anos atrás