A primeira vez em que verbalizei a possibilidade de realizar uma cirurgia bariátrica foi numa conversa com minha noiva, durante uma viagem de carro. Ao volante, eu suava frio e sentia as pernas tremerem, envergonhado só por externar que cogitava aquela medida extrema, que sempre encarei como uma admissão de fracasso. Depois de quase duas décadas lutando de diferentes maneiras contra a balança — e, via de regra, perdendo feio —, o sentimento reinante era que, enfim, eu havia sido derrotado de vez.
Não fui uma criança gorda, longe disso. Pra ser honesto, na adolescência eu era aquele que praticava um bullying ocasional contra colegas no sobrepeso. O cenário começou a mudar na faculdade, quando fui dividir apartamento em outra cidade. Não demorou para que a alimentação desregrada, somada a uma longa lista de desalinhos, cobrasse o preço.
Conforme ganhava quilos, adotava o bom humor como arma, investindo nas piadas autodepreciativas. Meu círculo mais próximo, por característica geral, seguia a mesma linha, e as referências à minha aparência eram constantes. Eu achava, sinceramente, que não ligava, mas hoje enxergo com clareza o quanto todo esse processo afetava (e ainda afeta) drasticamente a minha autoestima. Parte desses amigos talvez só descubra isso ao ler esse depoimento.
Desde os 20 e poucos anos, entrei e saí da academia incontáveis vezes, participei do Vigilantes do Peso, fui a psicólogo especializado, me consultei com nutricionistas, endocrinologistas e outros istas, decidi que trocaria elevador por escada, tomei remédio para emagrecer e usei antidepressivo contra uma suposta compulsão alimentar, numa fileira imensa de tentativas. Algumas funcionaram mais, outras menos — nunca por muito tempo.
Em 2019, depois de exames indicarem uma condição de pré-diabetes, o susto teve um efeito pedagógico. Com natação e dieta, perdi quase 20 quilos em quatro meses e retornei aos dois dígitos pela primeira vez em mais de dez anos. Estava feliz e animado. Mas saí de férias, vieram réveillon e carnaval, e a disciplina esvaiu-se. A pandemia trouxe a reboque angústias devastadoras e virou a pá de cal: até o fim de 2020, eu já havia recuperado tudo o que emagrecera, com alguma sobra.
A conversa no carro aconteceu cerca de três anos depois. Para além da estética e de outros problemas de saúde, como uma esteatose (gordura no fígado) crescente, os meses anteriores haviam sido marcados por um novo sintoma: uma dor profunda no joelho direito, que tornava uma tarefa árdua o mero ato de subir degraus e, entre outras limitações, praticamente me impossibilitava de participar da pelada semanal, então a minha única atividade física frequente. Aos 35 anos, eu sentia meu corpo desmoronando, levando junto meu emocional.
Foi nesse estado que comecei a pesquisar regularmente sobre a bariátrica em madrugadas insones, nas quais chegava a passar horas mergulhado no assunto. Até então, caso alguém me perguntasse se eu cogitava esse caminho, a resposta era veemente e invariável: “Jamais”.
A reação da companheira ao se deparar com tamanha guinada, naquele papo, foi determinante para o que viria a seguir. Ela me escutou em silêncio por um bom tempo. Depois — mesmo ponderando não ser, com as informações que tinha até então, a favor da intervenção —, disse o que eu mais precisava ouvir: “Não existe nenhuma razão para você sentir vergonha”. E que, se fosse essa a opção escolhida, estaria ao meu lado, dando apoio a cada etapa.
O acolhimento afetuoso tirou um peso (sem trocadilhos) gigantesco das minhas costas. Em semanas, fui à primeira consulta com um cirurgião especializado, acompanhado por ela. Aos poucos, passei a falar abertamente sobre a operação iminente. Às vezes ainda um pouco constrangido, mas o simples exercício de não esconder, somado a muitas horas de autorreflexão e conversa na terapia, ajudou a diminuir gradativamente o embaraço. Fui percebendo, por exemplo, que não fazia sentido encarar aquela escolha como fraqueza ou covardia. Como tomar esse percurso como uma saída fácil diante do tanto de esforço e privações a que um paciente bariátrico precisa se submeter?
Os preparativos para a operação, por exigência da clínica e do plano, demandam laudos de psicólogo e nutricionista. Tive duas sessões com profissionais vinculadas ao próprio espaço e, embora ambas tenham agido com absoluta retidão, foi impossível fugir da sensação de que o procedimento teria sido validado em qualquer cenário. Afinal, a saúde, nesse contexto, tende a ser acima de tudo um negócio. Nos meses seguintes, também fui a consultas com uma endocrinologista, além de novos encontros com o cirurgião.
Este último explicou detalhadamente as diferentes técnicas a que eu poderia ser submetido, a depender dos resultados de uma bateria de exames e, ao cabo, da minha própria decisão. As duas principais eram o bypass, que isola uma porção do estômago a partir de um desvio do intestino — em tese reversível, em caso de problemas eventuais; e o sleeve, que remove definitivamente a maior parte do mesmo órgão. A primeira me assustava menos, e terminou por ser também a mais recomendada clinicamente para o meu quadro.
Esse não era meu único temor, porém. Foi aflitivo saber que precisaria fazer uma complementação vitamínica para o resto da vida, e a possibilidade de desenvolver uma espécie de intolerância a algum alimento, o chamado dumping, era igualmente angustiante. Em escala menor (mas não tão menor assim), receava o desafio de passar, no mínimo, um semestre inteiro sem uma gota de álcool. O fato é que a recuperação como um todo, sobretudo no período inicial, com dieta exclusivamente líquida, anunciava-se muito difícil.
Por isso, a recomendação veemente de toda a equipe médica era que eu iniciasse mudanças na rotina, em especial a alimentar, já no período anterior à cirurgia. Também deveria adotar atividades físicas regulares. Não fiz absolutamente nada disso, e anunciei abertamente à psicóloga que assim seria. Ela demonstrou preocupação, é verdade, mas não relutou em assinar o laudo que chancelava a bariátrica. Como resultado, fui para a faca com o maior peso da vida: 129 quilos, distribuídos por escasso 1,75m.
Tenho uma foto devorando um sanduíche repleto de queijo derretido com coca-cola e um brigadeiro na noite anterior à operação, a última refeição antes do jejum. Dormi relativamente bem, apesar da apreensão, e cheguei ao hospital com o sol nascendo. A noiva, tal qual o prometido, estava comigo, e minhas sogra e mãe também fizeram visitas ao longo da manhã. Segui para o centro cirúrgico pouco antes de 12h, relativamente sereno. O efeito da anestesia geral passou um pouco antes do esperado, e despertei ainda na sala de cirurgia, para a surpresa de alguns enfermeiros. De volta ao quarto, tive alta na manhã seguinte, sem intercorrências significativas.
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A partir daí, entretanto, a coisa mudou de figura. Não era mentira: as duas primeiras semanas são, realmente, desesperadoras. O problema não é nem a ingestão apenas de sopas ralas, chás, sucos e afins, uma vez que não há sensação de fome. Mas o desejo por mastigar algo, fosse o que fosse, era sufocante, e ver alguém comer virou um calvário. Também sofri com a ínfima quantidade de água permitida só nas minutagens previstas, que me deixava com uma sede constante. Por fim, senti dores acima do esperado na região do abdômen quando retornei ao trabalho em home office, que me obrigaram a recorrer ao médico por analgésicos mais fortes.
Passada a provação inaugural, a poeira foi, aos poucos, assentando. Assim que veio a liberação, passei 15 dias consecutivos indo à academia religiosamente, incluindo sábados e domingos; adaptei-me bem ao cardápio, com refeições pesadas grama a grama e levadas comigo para lá e para cá; tomei os remédios e vitaminas, não furei as restrições, foquei como nunca antes — um paciente nota 10 àquela altura. A perda de peso em ritmo crescente, naturalmente, ampliava a motivação.
Ainda assim, passei por alguns pequenos sustos. As taxas de vitamina D e ferro baixaram acentuadamente, exigindo suplementação extra. Outro índice, associado ao funcionamento do fígado, explodiu repentinamente, no que se descobriu ser consequência do relaxante muscular que vinha usando para contornar fortes dores nas costas, uma consequência inesperada da cirurgia — um novo remédio, ainda que sem surtir o mesmo efeito, devolveu os exames à normalidade. Não tive o dumping de modo significativo, mas houve episódios pontuais de hipoglicemia severa, com sintomas como sudorese extrema e bastante tontura.
Alguns desdobramentos foram óbvios, como as roupas há anos sem uso que voltaram a caber. Outros, nem tanto: passei a calçar um número a menos, a aliança agora samba perigosamente no dedo, o cabelo já escasso rareou ainda mais e me tornei uma pessoa extremamente friorenta, ao ponto de precisar usar duas meias e me agasalhar como se estivesse na Sibéria a um mínimo sinal de ar-condicionado nos primeiros meses. Também descobri que é possível socializar e estar com amigos sem beber, me divertindo muito mais do que supunha — ainda assim, retomei o consumo de álcool assim que liberado (mediante alguma insistência minha), no fim de semana anterior ao carnaval, sete meses após operar.
Não foi a única oscilação. Saí e voltei da academia algumas vezes desde a cirurgia, estando fora atualmente, apesar dos puxões de orelha dos profissionais que me acompanham. Voltei a comer de quase tudo ocasionalmente, embora em quantidades muito menores e evitando estripulias regulares. Há dias em que esqueço as vitaminas. Percebo com clareza como os deslizes crescem exponencialmente conforme vivencio alguma inquietude mais aguda, numa combinação perigosa, mas sigo me trabalhando, com terapia em dia, em busca de evitar que a repetição de padrões do passado prevaleça.
Com conquistas e tropeços, perdi um terço do meu peso, estabilizando ligeiramente abaixo dos 84kg há cerca de dois meses. Um ano depois depois da cirurgia, completado exatamente nesta quinta-feira, o joelho praticamente não dói, e retomei o futebol semanal com disposição que não tinha (a má qualidade segue igual). De maneira geral, sinto-me mais disposto, com mais vitalidade, emocionalmente muito bem. A tal qualidade de vida, tão citada no pré-operatório, é faticamente outra. Em resumo, estou… mais leve, acho. Não recomendaria o mesmo caminho a qualquer um, pelo simples motivo de que penso ser uma decisão, na essência, particular. Mas não sinto mais vergonha — nem da cirurgia, nem do meu corpo. Pra mim, ao menos por ora, funcionou.
Luã Marinatto é editor-assistente de Política e Brasil do jornal O GLOBO