A luta pelo direito ao silêncio, garantido por lei, tem se tornado cada vez mais intensa em meio à expansão dos chamados “baixos” — áreas de grande concentração de bares e casas noturnas. As queixas de barulho registradas na central 1746 da Prefeitura do Rio dobraram nos últimos anos: foram 9.370 em 2024, enquanto, de janeiro a 19 de agosto deste ano, o número já havia alcançado 19.639 registros. Entre os bairros mais barulhentos da cidade estão Leblon e Botafogo, ambos na Zona Sul.
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Botafogo, aliás, ocupa o quarto lugar no ranking de reclamações por perturbação do sossego registradas até 19 de agosto, segundo os dados mais recentes do sistema 1746. O bairro fica atrás apenas de Camorim, Copacabana e Barra da Tijuca. Os números são do Data.Rio, portal oficial da Prefeitura, e foram compilados pelo geógrafo Hugo Costa, a pedido do jornal O GLOBO.
Moradores apontam como justificativas para o crescimento de reclamações o avanço de bares para as ruas e a fiscalização deficiente. É o caso de Virgínia Fernandes, diretora da Associação de Moradores e Amigos do Leblon. Ela conta que, há algumas semanas, após publicação de vídeo no Instagram, um bar da Dias Ferreira — está em 57º lugar este ano entre as ruas com mais reclamações—, no Baixo Leblon, foi multado. Uma ação insuficiente, diz ela, em relação ao tamanho do problema:
— Cada vez piora mais. Virou moda as pessoas ficarem em pé na rua. A tendência dos bares tem sido a de alugar lugares pequenos, porque acabam se expandindo, tanto com a colocação de mesas e cadeiras em calçadas e vagas, que passou a ser autorizada, quanto para o meio da rua. Quando os bares fecham, chega o pessoal do delivery, e a confusão continua. Imagina como a situação vai ficar no verão.
Entre especialistas, a psicóloga clínica Francilene Torraca, doutoranda pela UFRRJ, entende que o aumento expressivo das queixas “tem relação direta com o estado emocional coletivo que vivemos hoje”:
— Depois da pandemia, muitas pessoas passaram a valorizar mais o silêncio, a rotina e a sensação de segurança em casa. Ao mesmo tempo, estamos mais ansiosos, irritáveis e sobrecarregados emocionalmente, o que reduz a tolerância a qualquer tipo de estímulo externo, como barulho, festa ou vizinho inconveniente. A psicologia chama isso de redução do limiar de tolerância ao estresse. Além disso, há uma mudança social e comportamental importante: as pessoas estão mais conscientes dos seus direitos e dispostas a expressar incômodos.
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Além de se manifestar através do canal oficial e buscar contato com os órgãos responsáveis, vizinhos do barulho estão adotando outras medidas para enfrentar a batalha. Um morador da Rua Fernandes Guimarães, em Botafogo — a 12ª com mais queixas este ano, numa lista que tem nas primeiras posições a Estrada dos Bandeirantes, que corta vários bairros da Zona Sudoeste; a Rua Dias da Cruz, no Méier e Engenho de Dentro; e a Avenida Olegário Maciel, na Barra — colocou janela acústica no apartamento. O que não basta.
— Dormimos com tudo fechado, ar e TV ligados. Se desligar a televisão, mesmo com a janela acústica, dá para ouvir o som, porque as paredes não têm tratamento acústico. A bagunça começa quarta, quando tem jogo, e vai até domingo. Os bares fecham por volta das 3h da madrugada nos dias mais movimentados. Depois, o pessoal fica até 5h, 6h, consumindo com os ambulantes. Fecham a rua. Até carro de polícia tem dificuldade de passar — conta o morador, que pede para não ser identificado, com medo de represálias.
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Diante da balbúrdia, a administradora Michele Elias, moradora da Arnaldo Quintela — eleita a 8ª rua mais legal do mundo em 2024 pela Time Out — precisou procurar um psiquiatra para que receitasse remédio para dormir.
— É barulho por todos os lados. Têm música ao vivo, caixas de som. Minha filha, de 8 anos, não consegue dormir no quarto dela, onde o barulho é pior. Para que ela e meu marido durmam, é preciso ligar a TV nas alturas — conta Michele. — Os bares sempre falam que o movimento traz segurança. Mas, na quinta passada, a farmácia embaixo do meu prédio foi assaltada às 21h47.
Desde 2017, a responsabilidade por fiscalizar o barulho no Rio passou a ser da prefeitura. Mesmo assim, com 100 mil ligações, a perturbação do sossego continua sendo o top 1 nos chamados do 190, controlado pela Polícia Militar.
Da Zona Sul para a Zona Norte, o descontentamento faz eco. Desde maio, um morador da Rua Bariri — 69º lugar em queixas ao 1746 —, em Olaria, reclama do Bariri 22, um bar com cobertura de alumínio, que tem música ao vivo na calçada, especialmente às sextas e aos sábados. Dos 17 protocolos do morador que constam da central até agosto, cinco informam que o estabelecimento foi orientado.
— São meses orientando, e o barulho continua. No dia 28 de setembro, à 1h da madrugada, com a janela do meu quarto fechada, medi com meu decibelímetro 71 decibéis — reclama o vizinho, que pede anonimato. — Vou vender o apartamento. Gosto do lugar, mas a saúde da minha família é mais importante.
Um dos sócios do Bariri 22, que se apresentou apenas com Rafael, conta que guardas municipais estiveram no local e garante que abaixou o som. Ele também tem suas queixas:
— Já jogaram ovo e até pedra na cobertura de alumínio e nos carros. Poderia ter machucado alguém.
Ainda no subúrbio, na Avenida Brás de Pina — 11ª entre as ruas com mais reclamações —, o Baixo Vista Alegre se destaca pela quantidade de bares com música ao vivo e som ambiente, e carros estacionados com rádios num volume alto.
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— Fecho a janela e ligo o ventilador para conseguir dormir. O que incomoda mais é o barulho das motos nos dois sentidos — destaca Rogéria dos Santos, que se mudou para a Brás de Pina há cinco anos.
Com um decibelímetro, O GLOBO mediu entre 22h25 e 22h35 da última quinta-feira, quando a frequência era baixa por causa do frio, até 91.4 decibéis na calçada do lado oposto a bares com música ao vivo, quando o máximo permitido após às 22h em áreas comerciais é de 65 decibéis. Também mantendo distância, foram medidos 82.7 decibéis na esquina das ruas Fernandes Guimarães e Arnaldo Quintela, às 23h35; e 83.8 decibéis no cruzamento das ruas Dias Ferreira e General Venâncio Flores, à meia-noite e meia.
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Em nota, o presidente do Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro (SindRio), Fernando Blower, ressalta que a entidade busca soluções para a boa convivência. “Buscamos orientar e informar para que os negócios do setor possam continuar crescendo e prosperando, sempre em harmonia com a sua vizinhança”, destaca.
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Operação ‘Ruído Zero’
Este ano, fiscais da Secretaria municipal de Ordem Pública (Seop) e guardas municipais aplicaram 419 multas, notificaram 1.215 estabelecimentos e cassaram seis alvarás por perturbação do sossego — existe mais um processo em tramitação. Em 2024, foram três espaços fechados.
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Segundo o secretário Marcus Belchior, não houve licenciamento de novos bares e boates que pudesse justificar o crescimento das queixas este ano. Ele acredita em mudança de comportamento, tanto positiva, no que diz respeito à civilidade dos denunciantes, quanto negativa, em relação ao desrespeito ao próximo.
A pasta está estruturando uma operação, batizada inicialmente de “Ruído Zero”. Entre outras iniciativas, a ideia é que sejam realizadas blitzes em pontos com grande concentração de bares.
— Vamos buscar soluções tecnológicas e aumentar as ações de conscientização e a fiscalização. A operação terá várias vertentes, entre elas a da conscientização. Reforço que o cidadão continue denunciando, acreditando no 1746 — diz Belchior.