O som da raquete elétrica se tornou o novo toque da portaria de um edifício na Rua Machado de Assis, no Flamengo, Zona Sul do Rio. O chefe de portaria Antônio Leoncio já não trabalha sem o equipamento. Nos últimos dois meses, o total de chamados para vistorias em locais com presença de insetos como mosquitos, aranhas e lacraias aumentou 24,5% em relação ao mesmo período de 2024, segundo dados do portal 1746, da Prefeitura do Rio. Foram 63 chamados na Zona Oeste, 48 na Zona Norte e na Zona Sul, onde o número mais que dobrou em relação ao ano anterior.
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— É raquete, inseticida e ventilador ligado o tempo todo. Já virou parte do trabalho — disse Antônio.
No prédio onde ele trabalha, a moradora Cristiane Nunes conta que até o banheiro virou abrigo dos insetos.
— Não existem mais medidas para combater os mosquitos. Eles superam tudo! — disse Cristiane.
A presidente da Associação de Moradores do Flamengo, Isabel Franklin, diz que a situação tem atrapalhado o sono:
— É uma perturbação até para dormir. Por isso, orientamos que os moradores façam vistorias, mas, mesmo assim, não vemos melhora.
Em Copacabana, a situação é parecida. Enquanto porteiros que trabalham em edifícios na Avenida Atlântica recorrem às raquetes elétricas, moradores de ruas internas arriscam outras estratégias. É o caso do enfermeiro Carlos dos Santos, que mora na Rua Constante Ramos, na altura do Posto 4:
— Passei a usar incenso há uma semana, mas ainda não vi muito efeito. Fico na expectativa de que os órgãos públicos ajudem a resolver.
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Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) informou que, até 4 de outubro, já foram realizadas mais de 9,1 milhões de vistorias em imóveis na cidade para prevenção e controle do Aedes aegypti, e 1,2 milhão de recipientes foram eliminados ou tratados.
O avanço dos mosquitos também aqueceu o mercado de telas de proteção. A empresa carioca Mais Telas Mosquiteiras registrou, segundo o coordenador Reinaldo Macedo, aumento expressivo de pedidos nos últimos seis meses, especialmente em bairros como Recreio e Barra da Tijuca.
— Antes, os focos eram pontuais, mas hoje o problema é geral — diz Macedo, coordenador de equipe e instalador de telas há 15 anos.
No dia 2 de outubro, vereadores aprovaram, em segunda discussão, o Projeto de Lei 2799-A, de autoria do vereador Marcelo Diniz, presidente da Comissão de Combate ao Borrachudo. O texto prevê a distribuição gratuita de repelentes em Clínicas da Família em áreas com altos índices de infestação.
— Muita gente leva esse problema na brincadeira, mas ele é sério. Quem convive com isso sabe como impacta o dia a dia. E há pessoas que não têm condições de comprar repelente para se proteger — afirmou Diniz.
Agora, a proposta aguarda sanção ou veto do prefeito Eduardo Paes.
A infestação também transformou a rotina de estudantes. Na Escola Municipal Senador Correia, em Laranjeiras, uma professora do primeiro ano resolveu produzir um repelente artesanal com óleos essenciais para os alunos usarem durante as atividades fora de sala. A iniciativa virou conteúdo pedagógico: as crianças aproveitaram para aprender sobre prevenção e cuidados para evitar a proliferação dos mosquitos.
Nas ruas, o problema é generalizado. O taxista Sérgio Filho, que trabalha há 44 anos na região, diz que nunca viveu nada igual:
— Todo ano o verão traz mosquito, mas este ano foi diferente: eles apareceram no inverno. Agora, na primavera, está ainda pior. Hoje fico trancado no carro para não ser atacado — conta.
Em Laranjeiras, Maria Farelli tenta enfrentar o problema com humor:
— Parece que deixei de morar sozinha para dividir o apartamento com colegas chatos. Já cansei de usar inseticida, e o repelente virou parte da rotina. Coloquei até tela na janela para ver se resolve, e foi uma nota.
Para o biólogo Ademir Martins, chefe substituto do Laboratório de Fisiologia e Controle de Artrópodes Vetores do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), o aumento recente de mosquitos está diretamente relacionado às mudanças climáticas e à elevação das temperaturas médias.
— As temperaturas mais altas deixam os mosquitos mais ativos. Além disso, encurtam o tempo de desenvolvimento das larvas. Ou seja, o ciclo de vida do mosquito fica mais curto, e isso aumenta a quantidade total de indivíduos — explica.
Segundo ele, esse fenômeno altera a sazonalidade natural das espécies. Se antes havia uma queda clara nos meses frios, agora, mesmo no inverno, o mosquito encontra condições para sobreviver e se reproduzir:
— Isso significa que o Rio tem mosquito o ano inteiro. No ambiente urbano, o principal é o Aedes aegypti e o Culex quinquefasciatus. Já nas florestas, como o Parque da Tijuca e a Pedra Branca, há espécies dos gêneros Haemagogus e Sabethes, que transmitem a febre-amarela silvestre — explica.
Ele lembra que o Aedes — que transmite a dengue — é diurno e se reproduz em água limpa e parada, como caixas d’água e vasos de planta. Já o Culex (pernilongo), é noturno e prefere ambientes com matéria orgânica, como bueiros, fossas e caixas de gordura. Ele não é o principal transmissor de doenças no Rio hoje, mas causa um enorme incômodo, especialmente para crianças e pessoas alérgicas.
O biólogo alerta para o uso exagerado de inseticidas e fumacês, prática que pode agravar o problema:
— Em muitos condomínios, fumacês passam todos os dias, o que é um absurdo. Isso seleciona mosquitos resistentes aos inseticidas.
Sobre o uso do fumacê (inseticida UBV), a Prefeitura ressaltou que o produto é aplicado apenas em situações específicas, seguindo as Diretrizes Nacionais para Prevenção e Controle da Dengue, do Ministério da Saúde. Segundo o órgão, o método não deve ser usado indiscriminadamente, nem em áreas de preservação ambiental.
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A Fiocruz monitora outras espécies com potencial de causar surtos. Entre elas, o Aedes albopictus, “primo” do Aedes aegypti, que já causa dengue na Europa. Segundo o pesquisador, o albopictus é preocupante porque vive não só na borda das florestas, mas também no meio urbano, podendo servir de ponte entre os vírus da mata e os da cidade, levando doenças de um ambiente para outro.
O pesquisador cita ainda os mosquitos silvestres do gênero Haemagogus (como o Haemagogus leucocelaenus e o Haemagogus janthinomys), responsáveis pela febre-amarela silvestre, e o gênero Sabethes, com espécies secundárias que também transmitem o vírus.
Já o Anopheles, transmissor da malária, está restrito a regiões de mata úmida, como Nova Friburgo e Casimiro de Abreu, e costuma se criar em bromélias.
A SMS orienta que se evite o acúmulo de água, e que denúncias de focos de mosquito sejam feitas à Central 1746.