Após oito meses de tensão em meio à pior crise nas relações entre os dois países em 200 anos, os presidentes Lula e Donald Trump devem se reunir hoje, na Malásia, em um encontro que será, ao mesmo tempo, teste e termômetro do diálogo entre Brasil e Estados Unidos. O momento é de transformação da geopolítica global — com intensos embates e pressões nas relações internacionais — o que provoca questionamentos entre analistas e diplomatas se o cenário atual seria mais favorável ou contrário ao entendimento entre os dois presidentes.
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O foco da provável conversa deverá ser o tarifaço imposto por Washington a exportações brasileiras para os EUA, mas há a sombra de temas delicados, das sanções contra cidadãos brasileiros à ofensiva americana sobre a Venezuela, além das incertezas sobre a permanência do acordo de paz entre Israel e o grupo terrorista palestino Hamas, na Faixa de Gaza, e uma solução para a guerra entre Rússia e Ucrânia.
O governo brasileiro vê o encontro como um teste para o diálogo e uma chance de medir até onde Washington está disposto a recuar nas sanções econômicas e diplomáticas aplicadas contra o Brasil desde julho — medidas que, segundo Brasília, têm caráter mais político que comercial.
Na conversa telefônica que os dois tiveram há duas semanas, o americano evitou mencionar o ex-presidente Jair Bolsonaro, seu aliado, condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 27 anos de prisão por tentativa de golpe de Estado. O gesto foi interpretado no do Planalto como sinal de que a Casa Branca pretende restringir a pauta ao comércio, o que foi bem recebido por empresários e entidades setoriais que pressionam por uma solução pragmática.
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Ainda assim, Lula pretende ir além do tarifaço. O presidente quer reiterar o convite para que Trump participe da COP30, em Belém, no mês que vem, e abordar questões regionais e globais. Entre os temas que devem surgir estão as ações de Washington contra governos da América do Sul, como os de Nicolás Maduro, na Venezuela, e Gustavo Petro, na Colômbia.
A ofensiva americana contra Maduro reacendeu atritos regionais e colocou à prova a capacidade de articulação política de Lula, que tenta equilibrar a defesa da soberania dos vizinhos com a manutenção de um diálogo pragmático com Washington.
Lula deve se posicionar como intermediador do conflito, enfatizando que o Brasil pode atuar como protetor da paz na América Latina, promovendo negociações e soluções diplomáticas em vez de confrontos diretos, diante da crescente tensão sobre a situação venezuelana.
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Para o diplomata Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil nos EUA, o ideal seria que o brasileiro mantivesse cautela diante das tensões americanas com Maduro:
— O mais prudente seria esperar para ver se Trump toca no assunto. O Brasil, no melhor dos casos, ouviria e não falaria nada de imediato. Não faz sentido oferecer mediação.
Lucas Martins, especialista em História Americana e Estudos Globais da Temple University, na Filadélfia, avalia que o governo Trump vê a América Latina sob uma ótica da Guerra Fria, pressionando países a escolherem entre EUA e China. A ameaça de invasão da Venezuela, destaca, é usada para pressionar o Brasil:
— Os EUA podem condicionar concessões de tarifas ao Brasil a um alinhamento mais claro com os interesses americanos em detrimento de uma agenda chinesa. A postura do Brasil em relação à Venezuela e ao uso do dólar nas transações é crucial para as negociações com o governo dos EUA.
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O pano de fundo do encontro é um cenário global marcado por conflitos, disputas comerciais e redefinição de alianças entre países do chamado Sul Global. Brian Winter, americanista e editor da revista Americas Quarterly, espera cautela dos dois lados. Ele ressalta que o foco principal da ida de Trump à Ásia não será Lula, e sim uma reunião agendada com líder chinês, Xi Jinping.
— Trump pode ter se cansado da estratégia anterior e quer evitar mais problemas com o Brasil — analisa.
Michael Shifter, presidente do think tank Diálogo Interamericano, que fica nos EUA e se decida às relações internacionais do Hemisfério Ocidental, destaca que ambos os presidentes jogarão com seus eleitores.
— Encontrar-se com o volátil Trump sempre traz alguns riscos. Mas será um bom sinal se ambos os presidentes estiverem preparados para se encontrar e, com sorte, ter uma troca franca e respeitosa sobre questões que afetam profundamente ambos os países — acrescentou Shifter.
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Outro tema espinhoso que pode surgir na conversa, desta vez trazido por Trump, é a proposta de reduzir o uso do dólar nas transações comerciais entre os países do Brics — bloco que o Brasil integra ao lado de países como Rússia, Índia, China e África do Sul. O presidente americano já ameaçou elevar tarifas sobre produtos vindos das nações do bloco caso a iniciativa avance. Lula, segundo interlocutores, deve responder que o uso de moedas locais não é uma afronta ao dólar, mas uma prática já adotada pelo Brasil com países do Mercosul, como Argentina, Uruguai e Paraguai, cujo principal objetivo é diminuir os custos das operações.
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O presidente Lula também pretende esclarecer o desequilíbrio desfavorável ao Brasil nas trocas comerciais com os EUA, contrapondo a narrativa de Trump de que o país se beneficia excessivamente do acesso ao mercado americano. Para diplomatas experientes, o simples fato de Lula e Trump se sentarem à mesa já representa um gesto de distensão após meses de hostilidade, com o estímulo do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) em ação nos EUA. Ainda assim, a expectativa majoritária é de um encontro muito mais simbólico do que prático.
— O aumento da lista de exceções ao tarifaço é a perspectiva mais viável e factível no curto prazo — avalia Rubens Barbosa.

