“O olhar de um pai” (Le regard d’un père) é o subtítulo da exposição mais delicada e amorosa que vi nessa temporada, em Paris, no Museu de Arte Moderna. São tantas as histórias escabrosas em famílias de artistas, são tantas as brigas ácidas por heranças, que essa mostra nos surpreende pela placidez. E pela devoção e admiração entre pai e filha.

Henri Matisse, um dos maiores pintores do século XX, estudava Arte e tinha 24 anos quando engravidou sua modelo Caroline Joblaud. Foi uma relação efêmera, com uma filha acidental. Marguerite nasceu, mas só foi reconhecida pelo pai aos três anos. Foi morar com ele. A mulher de Matisse a criou como filha, junto aos dois filhos do casal.

Tudo tão absurdamente normal.

Aos sete anos, a pequena Marguerite teve difteria e, sob o risco de asfixia, fez uma traqueostomia. Escondia a cicatriz grosseira no pescoço com fitas e laços de veludo preto. Matisse a retratou ao longo de 50 anos, em mais de 100 pinturas e desenhos, muitos inéditos e agora expostos. Em todos, o olhar intenso e introspectivo da menina, da adolescente, da mulher.

Acompanhamos o crescimento daquela garota no ateliê paterno. Matisse confiava à filha o preparo das cores e outras tarefas. Marguerite estudava em casa, pela saúde frágil. Ela nos surpreende pela disciplina ao posar para o pai sem afetações ou sorrisos.

Além de seus olhos oblíquos e castanhos, havia os gatos. Matisse evitava exibir a filha, mas “Marguerite au chat noir” percorre o mundo em exposições e vira um sucesso absoluto. Berlim, Londres, Nova York, Chicago e Boston. O pai se recusa a vender a tela e a mantém em casa até morrer.

Não era uma relação doentia ou obsessiva, mas sim terna e próxima. Marguerite, livre da cicatriz e das fitas no pescoço após uma cirurgia reparadora, se casa aos 29 anos com um historiador e crítico de arte e some dos quadros do pai. Torna-se a agente de Matisse, por conhecer sua obra mais que ninguém.

Marguerite intermedia a relação entre o pintor e os galeristas, colecionadores e diretores de museus. Organiza suas exposições. E até se permite aconselhar o pai a “trocar a luz inebriante de Nice pelo cinzento de Paris, para as telas ganharem profundidade”.

Toda essa boa vida de filha célebre de artista famoso não a acomoda. Ao contrário, a incomoda. Faz experiências na haute couture, apresenta em Londres suas criações. Mas não é o bastante. Explode a Segunda Guerra. E ela se engaja no movimento da Resistência ao nazismo.

“Não podemos nos desinteressar pela época em que vivemos. Sou feita do mesmo estofo que os guerreiros, os fanáticos, os ardentes”. Marguerite é presa, torturada pela Gestapo. Um ataque aéreo das Forças Aliadas a salva, quando era levada de trem para um campo de concentração.

Em 1945, ela reaparece numa série de desenhos de Matisse. Com sua beleza madura. Com marcas da guerra. Até o fim da vida, até o coração parar, representou o pai.

O público que não é ávido por arte conhece Matisse sobretudo por sua época fauvista, de cores vivas, audaciosas, com traços simplificados e fluidos. Sua tela Danse, de 1910, com cinco figuras nuas unidas em círculo, talvez seja quase tão popular quanto as Nymphéas de Monet.

Incrível pensar que Matisse estudava Direito quando ficou doente e ganhou da mãe, em casa, um estojo completo de pintura. Desistiu de ser advogado, para desespero do pai.

Incrível pensar como, depois de não reconhecer sua neném por três anos, Matisse criou uma filha tão cúmplice e dedicada. Numa família sem tragédias ou disputas.

O contrário de seu contemporâneo Picasso, acusado por mulheres, filhos e netos de tantos abusos, que resultaram em cinco suicídios.

“Matisse e Marguerite – o olhar de um pai” nos transmite não só o talento, mas o caráter do pintor.

Um vínculo eterno, ao longo da vida em que Marguerite foi inspiração e, depois, agente de Matisse — Foto: Reprodução

Marguerite, filha e musa de Matisse