Nascido “no Carnaval de 1938” em Duas Barras, interior do estado do Rio de Janeiro, Martinho José Ferreira se mudou com a família para a capital com apenas quatro anos de idade. Aos 15, já estava compondo seu primeiro samba, “Piquenique”, que foi cantado no terreiro da escola de samba Aprendizes da Boca do Mato, no Lins de Vasconcelos, bairro da Zona Norte.
Em 1969, aos 31 anos, depois de alguns sambas-enredo e andanças por festivais, o cantor e compositor lançou o primeiro (de muitos) LPs próprios, “Martinho da Vila”. Desde então, O GLOBO acompanhava, em fotos, sua trajetória de glórias no samba e na MPB — da qual se tornaria, por sinal, um dos maiores nomes.
Memórias reveladas: Martinho da Vila conta as histórias por trás de suas fotos históricas
Hoje, aos 87, Martinho se deleita ao conferir, a convite do jornal, uma seleção de fotos do Acervo O GLOBO. São 56 anos de histórias, que vão para além das imagens em si. Ao ver uma foto no desfile da Mangueira, em 1999, com Dona Ivone Lara, ele se lembrou do Kalunga, projeto do governo angolano, que em 1980 levou para o país, em missão cultural, uma série de artistas brasileiros. O sambista contou que, depois “de biritar muito” durante a viagem, teve “um surto”.
— Eu já estava para vir embora, aí me deram uma injeção. Na porta do avião, iam me dar outra injeção e a Ivone, que era enfermeira, falou: “Não dá injeção nele, não!”. E não deixou dar mesmo! — relembra Martinho, aos risos. — No avião, eu fiquei andando de lá para cá, coisa e tal, e fui ficando cansado. Foi justamente quando o Caymmi me chamou: “Martinho, vem aqui, por favor, senta aqui!” Sentei…. e dormi no peito do Dorival Caymmi! Que glória, né?
No próximo sábado, Martinho da Vila estará, ao lado de Roberta Miranda e de Chico César, na edição histórica do Projeto Aquarius, em comemoração aos 100 anos do jornal. A festa-concerto, gratuita, acontece às 15h30, na Praça Mauá, Centro do Rio, numa apresentação com a Orquestra Sinfônica Brasileira, regida por Eduardo Pereira. Será a primeira vez de Martinho com a OSB no Aquarius.
— O Projeto Aquarius tem essa função de apresentar um concerto erudito, sinfônico, para um público que nunca foi ao Theatro Municipal. E isso tudo, num lugar público, é uma coisa bacana — festeja Martinho da Vila, que ainda planeja para este ano mais um álbum, cheio de participações estreladas da MPB, e que em setembro, participa com Alcione do show de Zeca Pagodinho no festival Doce Maravilha. — E em novembro tem Europa, três shows em Portugal, um em Barcelona e um em Amsterdã. Depois, chega de viajar, Celso (Luiz, produtor que acompanha Martinho há anos)!
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Na incursão pelo passado por intermédio das fotos, o cantor e compositor revê grandes amigos que já se foram, lembra dos tempos da boemia no Rio de Janeiro e de carnavais inesquecíveis (como o de 1988, em que a Vila Isabel conquistou o seu primeiro título de campeã do carnaval carioca, aos 41 anos de existência, com um enredo seu, “Kizomba, festa da raça”), além de contar causos com grandes nomes da música brasileira, como o cantor e compositor Zé Kéti, com o qual desfilou na Mangueira, meses antes de o autor de “A voz do morro” falecer:
— Zé Kéti foi um grande compositor, fez vários tipos de música, gostava dele. Mas teve um acontecimento chato. Eu tinha um empresário que marcava dois, três shows por dia. Eu falei: “xará, não marca mais show porque eu vou deixar você mal!” Tinha um show no Mackenzie, no Méier, lotadaço. Eu estava com sono, já tinha feito um show, e fui para casa. Caramba, e o Zé Kéti tinha ido ver o meu show lá!
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1969 – Amizade (tardia) com Candeia
Essa aqui acho que foi na casa do Candeia (ao centro). (No começo), eu não gostava muito dele, porque ele era da polícia, era imponente… mas depois, ele teve aquele problema (levou cinco tiros e ficou paraplégico), e no carnaval, passou a juntar os amigos em casa antes de desfilar. Aí sim eu conheci Candeia e fui ficando amigo e parceiro dele.
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1969 – Sargento Ferreira
Que sargento… fumando cigarro! Era uma parada militar e fui destacado par ver se estava tudo direitinho. Eu não pensava em seguir carreira musical, tinha 13 anos de caserna. Aí tirei uma licença de seis meses, pensando “eu tiro uma onde e depois volto”. Emendei numa outra licença de dois anos, sem vencimentos. E aí dei baixa.
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1980 – O pequeno fugitivo
Estive em Angola e esse menino, que chama Gonçalves, andava comigo para lá e para cá. Quando vim embora, ele falou “eu gostava (gostaria) de ir ao Brasil”, e eu disse “quando você conseguir dar um jeito, você vai”. Menino, ele fugiu! Ele ia para o aeroporto e dizia: “a minha mãe está aí atrás”. Assim, ele chegou ao Brasil e ficou foi lá em casa.
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1981 – O sambista e as grandes cantoras
Essa aqui é a Alcione? (reconhece a cantora, ao centro). Ela, eu conheci novinha, quando fomos a São Paulo para participar do programa do Silvio Santos. E aqui (à esquerda) é a Clara Nunes, que eu considero, junto com Elizeth Cardoso e Elis Regina, uma das cantoras mais perfeitas assim que o Brasil teve. Essas aí foram fantásticas. Uma das primeiras gravações da Clara foi uma música minha, “Grande amor” (em 1968). Depois, ela queria conhecer o pessoal do samba, aí levei ela na casa do Candeia, na casa do Walter Rosa (cantor e compositor, parceiro de Candeia), levei na Vila Isabel, na Mangueira… era uma boa companheira.
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1983 – Com Beth Carvalho, música e bares
A Beth, eu conheci quando estudava na Academia de Comércio Cândido Mendes, na Praça XV. Um colega chamou para tomar um chope, tinha um barzinho ali por perto e, quando chegamos, tive uma surpresa boa, porque ela estava cantando “Iaiá do cais dourado”, música minha. A Beth era uma boa companheira de boemia. Ela dizia “Martinho, vamos tomar um chope!”. A gente saía bebendo por aí e fechava os bares no Rio.
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1987 – A Cruz de Malta é o meu pendão
O Vasco foi campeão e fizeram uma festa para dar umas faixas pros jogadores (entre eles, Roberto Dinamite, com a camisa do time) e umas para alguns de nós (artistas, como Martinho, Gonzaguinha e Sônia Braga). A história do Vasco é a mais bonita dentre as de todos os clubes do Brasil. Ele tinha aquele que era o maior estádio, São Januário, além de ter botado negros no time e de ter feito desses negros sócios do clube.
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1988 – Consagração com ‘Kizomba, festa da raça’
Eu tinha sofrido um acidente, mas mesmo com o braço enfaixado fui para a avenida. Esse foi o meu carnaval mais importante, porque a Vila estava sem patrono, sem patrocínio, e eu tive ideia de fazer um enredo simples. Não queria nada de brilho, só palha. Quando a Vila entrou, foi uma coisa fantástica. E ganhamos o carnaval. As escolas botavam nos carros só as modelos branquelas… botei todas no chão e subi com as pretas!
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1989 – Melhor que o prêmio… é a diversão
João Nogueira, Beth Carvalho, Tim Maia, Alcione… que maravilha! Não sei onde estávamos (no Golden Room do Copacabana Palace, para a entrega do Prêmio Sharp). O João era talentosíssimo, morreu muito cedo. Ele fez muita farra, mas também viveu muito. E o Tim, teve uma premiação, não sei se era essa mesmo, em que foi receber o troféu e dedicou ao cachorro… e ao Martinho da Vila! E eu não tinha nada a ver com aquilo!
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1991 – A negritude que não conhece fronteiras
Quando (o líder sul-africano) Nelson Mandela estava preso, lá na Europa faziam shows para ele, em várias cidades, e nada aqui. Aí fiz uma festa bonita na Praça da Sé (em São Paulo). Botei no palco o cara da Umbanda, um padre, um judeu, o cardeal, a baiana da escola de samba… e quando o Mandela foi liberto, ele foi nessas cidades todas, para agradecer. Olha só ele aqui (na Praça da Apoteose, no Rio) esticando a mão pra mim!
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1999 – Pulada de cerca, mas por uma boa razão
Eu só desfilo na Vila, mas dessa vez eu fui com a Mangueira porque era uma homenagem aos sambistas. Moreira da Silva, não sei se ele tinha escola. Dona Ivone Lara era Império Serrano. Zé Kéti, Portela. Esse aqui (ao lado de Martinho) eu não me lembro quem é (o repórter diz quem é). É o Zeca Pagodinho? Ih, é, rapaz é o Zeca, ele tá preto (risos)! Desfilamos na Mangueira, foi a única vez em que eu desfilei numa outra escola.
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2002 – Oscar Niemeyer e um sonho para a Vila
Eu queria fazer uma quadra moderna em Vila Isabel, e ficava sem graça de pedir para um amigo como o Oscar. Mas ele disse: “Faço com o maior prazer, porque não tenho uma obra de porte no Rio de Janeiro.” Eu falei: “Beleza, mas não vou poder te pagar”. E ele “Me paga com cavaquinho.” Dei então um cavaquinho para o Oscar (por obstáculos nos meandros do poder na escola, a quadra acabou não saindo da maquete).
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2002 – Com Naná, o mágico da percussão
Eita, Naná Vasconcellos! Acho que foi o maior percussionista brasileiro de todos os tempos. E, além de percussionista, ele era também um grande artista. Na França, onde ele estava morando, fui com ele a uma creche de crianças excepcionais. O trabalho era tentar chamar a atenção com a música. Naná tocou repique, surdo, um monte de coisa, mas as crianças não deram a menor bola. Aí ele pegou o berimbau e elas… “oi!”. Depois disso, ele teve que ir lá sempre.
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2011 – Encontro com um futuro astro do rap
Essa aqui foi no Rock Rio. O Emicida estava começando. Aí eu falei: “ô, (Toni) Garrido, vamos dar um apoio, porque ele está conhecido lá em São Paulo, mas aqui acho que é a primeira vez.” Pô, aí o Emicida parava e, sozinho, só falando, o negócio ferveu, ferveu muito. Ele é incrível, é uma inteligência fora de série, tem que ser estudado esse tal de Emicida. A escolaridade não é muita, mas ele é um sábio. Foi um encontro memorável.
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2014 – Um sambista na Academia
Foi uma homenagem que eu recebi lá na Academia (Brasileira de Letras). Qualquer escritor gostaria de ser membro da Academia. O Ferreira (Gullar), que falava mal, dizia que só tinha vaidoso, também acabou lá. Eu concorri uma vez, não recebi um voto! Agora também eu já esqueci isso. Quem deveria estar na ABL é o Nei Lopes, um dos escritores mais impressionante da negritude. Ele é um escritor, eu sou um cantor que escreve.
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2025 – Três gerações de uma mesma família
Aquele aí de cima é o Raoni, meu neto. Ele canta e tem grupo com a irmã, Dandara, que é a primeira porta-bandeira da Vila Isabel do próximo carnaval. E aqui é a Mart’nália, eu e ela, parece que é a mesma coisa. Tenho um compadre, o Paulo Rolim, que falou: “ó, não marca show no mesmo dia que a Mart’nália, não, senão eu vou no dela.” E eu: “pô, você tem que ir no meu, somos compadres!” Aí ele falou: “Se eu vou no dela, eu vejo ela e vejo você, vocês têm coisas muito parecidas. Além disso, ela ainda canta umas músicas suas.”
O Ministério da Cultura apresenta o Aquarius Rio de Janeiro através da Lei de Incentivo à Cultura. O evento conta com o Patrocínio da Prefeitura do Rio de Janeiro e da Secretaria de Cultura, do Instituto Cultural Vale e do Itaú, Apoio Institucional do Sesc RJ, Assessoria de Imprensa da InPress, Parceria da Orquestra Sinfônica Brasileira e da P&G Cenografia, tem as rádios Globo e CBN como Rádios Oficiais e Produção da SrCom. A realização é do GLOBO através do Ministério da Cultura, Governo Federal.