São poucos os passos que não são atravessados pelas 55 flechas de Mercedes Lachmann na Casa Brasil (antiga Casa França-Brasil), no Centro do Rio. A artista apresenta em sua exposição esses elementos que, segundo ela, mais indicam um caminho do que atacam — como seria mais comum. No espaço, que ainda oferece à vista folhas de diferentes árvores e ervas com propriedades curativas, esses símbolos apontam para uma valorização de saberes tradicionais pelos quais a escultora vem se interessando ao longo do tempo.
Logo ao adentrar o grande espaço da mostra, intitulada “Flecha”, o olhar do visitante segue as folhas de palmeiras, bananeiras e outras plantas que pendem em direção ao chão por meio de hastes que circundam o espaço central. Lachmann afirma que o estudo dos vegetais representa uma importante faceta de sua relação com o meio ambiente.
— Nessa exposição, o que costura são as plantas — adianta a artista. — Aqui, elas são apresentadas em suas muitas funções. As plantas são seres multiformes, com muitos cheiros, cores e propriedades curativas.
Essa relação com seres vegetais foi ainda mais aprofundada quando a escultora entrou em contato, em 2018, com o círculo de mulheres erveiras da Serra da Mantiqueira, uma cadeia montanhosa que se estende pelos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Com elas, Lachmann aprendeu sobre as ervas. A mostra conta com uma instalação em que 20 espécies secam sob a luz solar que desce por um vão no teto da Casa Brasil — um espaço onde é possível sentir o aroma dos vegetais.
“Flecha” havia sido apresentada anteriormente no Museu Internacional de Escultura Contemporânea (Miec), no Porto, em Portugal, em 2023. Lá, entretanto, não havia à disposição o aroma natural dos vegetais por causa das restrições do espaço.
Curadora da exposição, Cristiana Tejo destaca que ao chegar ao Rio as obras ganharam uma nova dimensão.
— Questões que estavam latentes na primeira exposição ganharam mais força, como a das plantas. No museu português, não pudemos levar materiais orgânicos. Já tinha o cheiro através de aromatizadores, mas não das plantas — diz ela, por telefone, de Portugal, onde mora. — No Rio, tornou-se um espaço de aconchego: pelo som, cheiro, pelas texturas… Um recanto para se refazer e onde é possível que quase todos os sentidos sejam ativados por meio das obras. Só faltou o paladar. As esculturas de Mercedes ganharam outra dimensão. Ela conseguiu, realmente, reconstruir um pouco a espacialidade pelas plantas.
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A exposição conta ainda com esculturas de madeira, material com o qual Lachmann começou a trabalhar em 2021. Pelo espaço, entremeadas às flechas, há oito dessas peças, que remetem ao desmatamento por seu aspecto queimado e que foram lapidadas de modo a comportar recipientes de vidro soprado. A esses frascos, a artista adicionou poções preparadas a partir de água e elementos como urucum, genipapo, alecrim, lavanda e arruda.
Surgem então cores como o vermelho, o amarelo-claro, o laranja e o terracota.
— A alma é imortal. A alma das plantas está nos recipientes fechados, onde não entra oxigênio. O tempo para ali, e o que pulsa é o poder das plantas — afirma ela. — Uso muito o conceito de encantaria, magia, pelas plantas, esses poderes que não são imediatos, mas fazem sentido ao corpo.
A artista diz ainda que o aprendizado com as mulheres erveiras lhe revelou formas de cuidado com as plantas que ela não conhecia.
— Quando faço os trabalhos, sigo o preceito que aprendi com as erveiras: colher as plantas na lua nova e, então, guardá-las por quatro ciclos lunares no escuro. Esse é o prazo em que a planta entrega sua alma para aquela poção, ficando pronta para consumo — diz a artista. — Meu consumo é estético, mas para mim as plantas são como estrelas: quando você olha para o céu, a estrela já morreu, mas seu brilho permanece. Na minha sensibilidade, as instalações pulsam no espaço, com todas as propriedades das plantas ali presentes.
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As muitas flechas no chão (outras aparecem ainda recostadas na parede) passam frequentemente despercebidas pelos visitantes, que chegam a arrastar levemente as peças com os pés. Mercedes Lachmann parece não se incomodar.
— Não tem problema, isso acontece tantas vezes. As pessoas que vêm acabam dando novas impressões à obra de arte, mas sempre que venho dou um jeitinho (de arrumar) — diz ela, entre sorrisos. — É uma escrita viva. Vai torcendo o R e aí vira um P ou alguma coisa assim, mudando a ordem.