No dia 30 de maio de 1962, em plena Guerra do Vietnã, o maestro britânico Benjamin Britten subiu ao palco da Catedral de Coventry, no Reino Unido — reconstruída após ser devastada pela Segunda Guerra Mundial — para apresentar o “Réquiem de Guerra”. A composição, escrita no auge da Guerra Fria, entrelaçava o texto latino da Missa dos Mortos com poemas do soldado Wilfred Owen, morto na Primeira Guerra Mundial, numa perturbadora reflexão sobre a violência dos conflitos. Mais de 60 anos depois, uma nova obra ecoa esse gesto de resistência pela música. A “Rapsódia das Nações” reúne Aquarela do Brasil, Arirang (música folclórica coreana), Kalinka (russa), Hava Nagila (judaica) e Melodia em Lá Menor (ucraniana). Sob regência brasileira, músicos de países marcados por conflitos — como Israel, Palestina, Irã, Rússia, Ucrânia e Coreia do Sul — transformaram o palco em território neutro. O Concerto pela Paz, liderado pelo projeto social Orquestra Criança Cidadã (OCC), do Recife, percorreu a Ásia e encerra a turnê nesta terça-feira no Vaticano, em apresentação diante do Papa Leão XIV, justamente quando se completam dois anos da guerra em Gaza.
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— A beleza da música está em sua abstração. Por transcender palavras, ela é compreendida em qualquer cultura. Quando o público vê músicos de países em conflito unidos em um mesmo propósito artístico, isso inspira esperança. Torna-se um símbolo vivo de que o diálogo e a harmonia são possíveis — afirmou o violista israelense Simon Lemberski, de 29 anos, principal viola da Ópera de Israel.
Filho de uma família judaico-russa que emigrou do Quirguistão após o colapso soviético, Lemberski cresceu com a percepção de como a história molda destinos. Questionado sobre o peso de dividir o palco com colegas de nacionalidades historicamente envolvidas em guerras, ele foi enfático ao dizer que, apesar dos pesares, todos vão enfrentar “o mesmo destino”.
— Antes de sermos israelenses, persas, coreanos, ucranianos e russos, somos seres humanos. Os conflitos são entre governos, mas é o povo comum que paga o preço. Fazer música junto com colegas de origens tão diversas me enche de esperança. Mostra que podemos nos comunicar, respeitar uns aos outros e criar beleza juntos. E talvez, um dia, nossos países aprendam a fazer o mesmo — disse o músico em entrevista ao GLOBO.
Em meio à guerra em Gaza, que completa dois anos nesta terça, Lemberski reconhece seu impacto emocional.
— É profundamente difícil. O ódio, a perda, o desespero de ambos os lados tornam difícil acreditar em um futuro esperançoso. O que me sustenta é ver pessoas clamando pelo fim da guerra e pelo retorno seguro dos reféns. Como humanista, acredito que devemos primeiro condenar o sofrimento de civis em todos os lados de toda guerra. Como artista, acredito que é meu dever trazer essa perspectiva humana para o palco — acrescentou.
Com jovens brasileiros de periferias dividindo o palco com colegas vindos de cenários conflituosos, o concerto se desenha como uma narrativa de contrastes. São realidades duras, trajetórias distintas e repertórios díspares, unidos sob uma mesma pauta.
Para o maestro José Renato Accioly — que conduziu a orquestra em Hiroshima, devastada pela bomba atômica 80 anos atrás, em Osaka, também no Japão, e em Seul, na Coreia do Sul, antes de chegar ao Vaticano —, o gesto vai além da execução musical.
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— Esperamos que o público fique comovido e sensibilizado por gestos pela busca da paz através da produção de sons que representam culturas distintas e tão distantes. Diminuir as distâncias culturais certamente promove o reconhecimento de que não estamos sós em nossas bolhas e de que o mundo é mais colorido se nossa percepção do outro for mais tolerante — disse.
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A incursão pacifista internacional de 2025 reprisa os propósitos de uma missão humanitária vivenciada por músicos da OCC com parceiros italianos, russos e ucranianos em 2023, também no Vaticano, em apresentação para o falecido Papa Francisco. Neste ano, portanto, a missão expande o apelo pela paz e inclui participantes de países tomados por conflitos.
Além de Lemberski, a violinista sul-coreana Lee Young também fez parte do Concerto pela Paz. Para ela, a música funciona como um idioma capaz de atravessar fronteiras — mas, talvez, não a que separa as Coreias.
— O que vemos é que não somos diferentes quando se trata de fazer música juntos. Os conflitos que existem nos une ainda mais, e é importante mostrar que somos apenas pessoas compartilhando a linguagem global da música — refletiu Young.
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As palavras da violinista carregam a história de seu país. A Península Coreana foi dividida após a Segunda Guerra Mundial, com a Coreia do Norte alinhada à antiga União Soviética e a Coreia do Sul aos Estados Unidos. A Guerra da Coreia (1950-1953) consolidou a separação, que perdura até hoje.
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— Conectar pessoas através dessa divisão é algo muito necessário, mas que parece quase impossível no momento, por conta de tantas proibições, principalmente do lado norte. Infelizmente, a escolha da música também é estritamente controlada e usada de forma indevida para fins de propaganda. Neste ponto, é difícil, para mim, enxergar possibilidades reais de compartilhar música através dessa fronteira — analisou a sul-coreana. — Mas não podemos ficar parados. Ter liberdade de escolha na música e nas outras artes é muito importante. Espero que as pessoas do outro lado da fronteira possam ter essa chance no futuro.
O violinista russo Nikita Shkuratov também participou do concerto. Sua voz ecoa em um momento em que a guerra na Ucrânia — iniciada com a invasão russa em fevereiro de 2022 — já ultrapassa três anos, deixou centenas de milhares de mortos e segue sem perspectiva de cessar-fogo. Shkuratov, por sua vez, destaca o caráter humano do projeto.
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— Apesar dos mal-entendidos políticos ou culturais entre nossos países, continuamos sendo, antes de tudo, seres humanos. A música tem um poder único de nos unir além das fronteiras, e por meio desta colaboração buscamos mostrar que respeito mútuo, amizade e criatividade compartilhada não apenas são possíveis, como também profundamente significativos — disse.
Para o fundador da OCC e idealizador dos concertos, José Targino, “a música tem esse poder silencioso de curar feridas que, às vezes, as palavras não são capazes de fazer”.
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— Quando subimos ao palco em outro país, levamos conosco não apenas partituras, mas sonhos, memórias, histórias de superação e, acima de tudo, uma vontade imensa de fazer o mundo acreditar. Demonstra que todos somos irmãos, sendo um símbolo vivo de que a paz não é uma utopia: ela pode ser ensaiada, tocada, sentida e vivida — afirmou Targino.
Afinal, como disse Mahatma Gandhi: “Não há um caminho para a paz, pois a paz é o próprio caminho”.