Onze anos depois de ganhar o Nobel da Paz e se tornar símbolo da luta pela educação feminina, Malala Yousafzai revela um outro lado, mais humano e vulnerável. Em “No meu caminho” (Companhia das Letras), que chega hoje às livrarias, a ativista paquistanesa abandona o tom institucional dos discursos e escreve sobre a vida longe das conferências diplomáticas.
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Em 2012, aos 15 anos, Malala levou um tiro na cabeça por defender o direito das meninas à escola em seu país. Sobreviveu ao ataque, sofreu uma paralisia facial parcial e tornou-se um ícone global. Após mudar-se para o Reino Unido, ingressou na Universidade de Oxford e tentou levar uma vida normal, apesar das responsabilidades incomuns para uma jovem da sua idade.
Entre festas universitárias, crises de ansiedade e aulas de escalada, ela narra seus aprendizados como universitária. Na jornada até se tornar a “nova Malala”, viveu conflitos com uma cultura estrangeira, inseguranças com a aparência e com as notas ruins, além de uma experiência traumática com maconha.
Em passagens que lembram um romance young-adult de formação, compartilha as desilusões amorosas e as preferências por bad boys, que precederam a descoberta do grande amor, o atual marido Asser Malik. “Meus homens dos sonhos tinham pele parda, eram rudes e peludos”, escreve. “Meus joelhos fraquejavam diante de uma barba escura e tufos de pelos escapando da camisa”.
Em entrevista ao GLOBO por videoconferência, de Londres, Malala fala sobre a pressão de ser vista como infalível, o bullying dos haters e a liberdade de finalmente poder errar e ser honesta consigo mesmo.
Seu novo livro é profundamente pessoal. Por que compartilhar esse lado da sua vida agora?
Minha história é pública desde os meus 15 anos, quando sobrevivi ao ataque do Talibã. Mas muita coisa mudou desde então. Eu era uma aluna solitária e me tornei uma universitária impulsiva. Tenho novas histórias, de amor, amizade, saúde mental e ativismo. É a forma que encontrei de me reintroduzir no mundo.
O livro lhe ajudou a recuperar o controle de sua própria narrativa?
Exato. Quando há tanta coisa sendo dita sobre você, é importante contar a sua própria versão. Fui totalmente verdadeira neste livro. Espero que as pessoas percebam que, no fim das contas, toda jovem do mundo vive experiências parecidas.
O que a vida universitária lhe ensinou sobre identidade e pertencimento?
Na universidade, eu estava tentando resgatar aquela versão mais jovem de mim mesma, que perdeu a infância. Eu me tornei ativista tão jovem que, durante toda a adolescência, nunca senti que vivia como uma adolescente. Eu vivia como uma diplomata, como uma mulher de Estado de 50 anos. E sempre que eu me via numa sala de aula com meninas da minha idade, eu não me sentia presente. Tinha me tornado uma pessoa quieta, sem amigos. Achava que ninguém poderia entender o meu trabalho e que eu não era “descolada” o suficiente para compreender as gírias e conversas do dia a dia delas.
Percebi que, na faculdade, eu poderia experimentar a vida de outro jeito. Meus pais não estavam comigo, eu estava afastada do trabalho. E foi a primeira vez que eu disse: “Ok, se ninguém está te observando, o que você faria?” Queria ir a todos os jantares, a todos os eventos que meus amigos fossem, queria invadir todas as festas (risos). Então, comecei a dar prioridade a socializar e fazer amizades. E, por meio dessas amizades, aprendi muito mais sobre mim mesma.
As pessoas esperam que você seja sempre forte e inabalável. Mas ser jovem também significa se arriscar e fazer besteiras?
Sim. Quando te chamam de corajosa tão cedo, isso molda sua vida. Depois de sofrer um ataque como o que eu sofri, as pessoas acham que nada vai te derrubar ou assustar. Mas fui muito honesta sobre minhas inseguranças no livro. Como, por exemplo, achar que nunca iria encontrar o amor na minha vida. Vivendo pela primeira vez como uma pessoa normal na universidade, nesses momentos sozinha em que ninguém parecia estar me vigiando, aprendi que errar faz parte da vida.
Na primeira vez que você fumou maconha, teve uma bad trip que despertou memórias muito nítidas do ataque contra sua vida. É curioso porque, embora seja uma experiência aparentemente normal para uma jovem, traz também um trauma incomum…
Achei que experimentar maconha seria algo engraçado para contar depois, mas não foi. Assim que comecei a me sentir mal, tive flashbacks e revivi o ataque. Foi horrível. Depois de ser baleada, eu só tinha pensado na recuperação física, nunca na saúde mental. Mas o trauma ficou no meu corpo. Tive pesadelos, ataques de pânico. Reviver o ataque mudou tudo.
Foi então que você procurou terapia pela primeira vez…
Sim. Minhas amigas perceberam que eu não estava bem e me incentivaram. Sou grata a elas até hoje. Eu acreditava naquele estereótipo de “ninguém vai entender o que estou passando”. Então, na minha primeira sessão, esperava que o terapeuta me receitasse algum remédio e resolvesse meus problemas imediatamente. Mas é um processo, e o tempo é a chave para a cura.
Como a terapia mudou sua vida?
Tudo o que aprendi na terapia hoje faz parte da minha vida. Tirar um momento para respirar fundo, sair para caminhar ou correr, experimentar novos esportes, e, acima de tudo, pedir ajuda quando estou passando por um momento difícil. Não tenho vergonha de pedir ajuda.
No livro você fala sobre o uso de botox para corrigir os danos do ataque em seu rosto. Hesitou em compartilhar algo tão íntimo?
O ataque comprometeu um nervo facial. Fiz cirurgias, mas o lado esquerdo do meu rosto nunca voltou a ser o mesmo. Eu recebia muitos comentários maldosos e ofensas de haters (na internet) que zombavam do meu rosto e da minha aparência. Isso me deixava muito triste, mas então eu disse a mim mesma: “Ok, quer saber? Vou focar no meu ativismo. Aparência e essas coisas não importam.”
Como isso afetou sua relação com outras pessoas?
Dizia para mim mesma que eu não deveria esperar ser amada, que eu nunca encontraria alguém que me amasse. Mas, no momento em que vi o meu atual marido pela primeira vez, soube que aquilo iria mudar. Ele era lindo, exatamente como eu imaginava que seria o homem com quem eu me casaria. Assim como eu, ele amava críquete. Tínhamos tantas coisas em comum… e o que mais me encantou foi o fato de ele não me ver como a mulher da mídia que as pessoas acham que conhecem.
Quem era a Malala que ele via?
Ele se interessava mais pela pessoa que eu sou hoje do que pela pessoa do passado. E, com o tempo, eu aprendi a me aceitar com graça e me amar também. Ele tem uma visão incrível sobre como homens e mulheres devem ser tratados com justiça. Ele pensa do jeito que todo homem deveria pensar. Mas não acho que devamos tratá-lo como uma exceção ou bater palmas por ter uma visão “diferente”. Esse deveria ser o pensamento normal: o de igualdade de direitos e dignidade para ambos em uma relação.
Antes de Asser, todos os seus relacionamentos amorosos viravam alvo de julgamentos e controvérsia. Quando você é um ícone global, até o namoro se torna político?
Tudo vira política! O que você veste, o que diz, sua vontade ou não de se casar. Me lembro das reações negativas quando usei jeans na faculdade. Me criticaram só porque queria me sentir uma estudante comum. Sobre casamento, acredito que toda mulher tem o direito de questionar e escolher. Vi muitas meninas perderem o futuro em casamentos forçados.
Casar foi uma decisão difícil para você?
Na minha cultura, não é permitido viver junto com a pessoa que você ama se não for casado. Então, precisei decidir se queria ou não lutar contra a minha cultura. No fim, me casei, mas isso não significa que eu seja contra ou a favor do casamento. Acredito apenas que deve ser uma escolha da mulher, que ela possa decidir por si mesma.
Serviço: “No meu caminho”. Autor: Malala Yousafzai. Tradutor: Berilo Vargas e Lígia Azevedo. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 320. Preço: R$ 69,90.