Miguel Falabella tem uma relação visceral com o trabalho. Transitou entre teatro, cinema e televisão, acumulando as funções de ator, autor e diretor. Agora, acaba de estrear peça em que assina texto e direção — “A sabedoria dos pais”, com Natália do Vale e Herson Capri.
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Em outubro, iniciará a temporada de “Fica comigo essa noite”, peça de Flávio de Souza em que divide a cena com Marisa Orth. E em breve retornará à TV em “Três Graças”, novela de Aguinaldo Silva que ocupará o horário das 21h da Globo. Para completar, fez o filme “Querido mundo”, adaptação da peça que escreveu em parceria com Maria Carmem Barbosa, exibido no Festival de Gramado e ainda inédito no circuito.
Depois da novela, Falabella irá para Portugal, onde participará de um filme ao lado de Orth. Também está envolvido num novo roteiro, “As más influências”, que define como “um vaudeville alucinado sobre jovens influenciadores, ostentação, dinheiro fácil”. No teatro, planeja assinar “Guanabara”, peça sobre seu universo familiar, atuar em “A herdeira”, de Henry James, e gostaria de dirigir um musical, “Ride the cyclone”, sobre jovens que morrem num acidente numa montanha-russa e vagam por um parque abandonado até um deles receber a chance de voltar à vida.
Uma trajetória tão extensa e diversificada merece ser documentada: Falabella quer se dedicar a uma autobiografia contada por meio de mulheres importantes no seu percurso. O título já foi escolhido: “Eu as tive em meus braços.”
Em “A sabedoria dos pais”, “Fica comigo essa noite” e “Querido mundo”, os personagens passam por experiências desestabilizadoras, mas se reerguem. Sempre é tempo de recomeçar?
Sempre. É a história da minha vida, o que me move. Pancada não me joga no chão, e sim para a frente. Mesmo diante de dores de amor, não fico derrubado na cama. “A sabedoria dos pais” é uma comédia romântica reflexiva sobre isso. Um casal que se separa depois de 35 anos. Ambos lembram dos casamentos longevos, mas não necessariamente felizes, dos pais.
Com a separação, os personagens se movimentam. Como diz a música, “mistério sempre há de pintar por aí”. E em idade avançada. Hoje em dia, as pessoas envelhecem e querem namorar e se divertir, em vez de ficar em casa fazendo tricô. Vejo por mim. À beira dos 70 anos, quando supostamente deveria estar mais quieto, tudo acontece. Tenho compromissos de trabalho até 2027.
Seus trabalhos atuais falam de relacionamentos conjugais. A sua percepção do casamento se transformou ao longo do tempo?
Acho que permanece a busca, a necessidade de se relacionar e de se ver de algum modo no outro. “A sabedoria dos pais” mostra a passagem do tempo. Ao se divorciar, o marido imediatamente arruma garotas mais novas, mas continua apaixonado pela mulher. Os dois vão tentando, dando cabeçadas e comemorando as bodas, mesmo separados. Ele quer congelar o tempo; ela, avançar. Depois desejam retroceder.
Em “Três Graças”, você interpretará Kasper, casado com João Rubens, papel de Samuel de Assis. Acha que a abordagem das relações homoafetivas mudou na televisão?
Fiquei com vontade de participar da novela por causa desse casal formado por um branco e um negro. Existem poucos casais gays na literatura dramática, em especial na televisão, vistos de maneira positiva. Na novela, terão uma filha adotiva. E não há nada de caricatural na abordagem, diferente do que víamos antigamente na TV.
Você se sentiu patrulhado no decorrer do tempo?
Quase fui espancado em praça pública quando assumi o cargo de gestor da rede municipal de teatros. Além disso, muitos ficam ofendidos com o sucesso comercial. É como se você tivesse feito pacto com o diabo. Eu me coloco no lugar do espectador. Sempre caminhei na direção do público, seja geograficamente, fazendo turnês nacionais, seja emocionalmente, porque a plateia se reconhece nas humanidades e desumanidades dos meus personagens.
Você foi alvo de protestos por causa do seriado “Sexo e as negas”. Como analisa o episódio?
“Sexo e as negas” surgiu do contato com a minha camareira, Nieta, que morreu ano passado. Ela morava na Cidade Alta, em Cordovil, e dava festas maravilhosas. Um dia, estávamos no aniversário dela e quatro amigas conversavam sobre os homens. Aí brinquei que o diálogo estava parecendo “Sex and the city”. E uma se virou e disse: “Sexo e as negas”.
A personagem de Karen Hils era uma homenagem a Nieta. A série colocou os artistas negros em posição de protagonismo na TV. Mas sofreu patrulhamento de sociólogas da PUC. Pena que só teve uma temporada. De qualquer modo, está no Globoplay.
Acha que, nos dias de hoje, o humor dos esquetes do besteirol seria aceito? E do programa “Sai de baixo”?
Em relação ao besteirol, sim. Não éramos ofensivos. Ríamos de nós mesmos e não dos outros. Estávamos à frente do tempo. Talvez hoje houvesse alguma polêmica com o “Sai de baixo”. Se bem que continua disponível com a tarja avisando que o programa representa uma época específica.
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Considera que é necessário limites para o humor? Como avalia a recente polêmica com o humorista Leo Lins (condenado a prisão por propagar conteúdo considerado discriminatório)?
Há situações que revelam que as pessoas perderam a educação. É, na verdade, falta de formação. A nova geração de “empreendedores” tem muita arrogância. Eles acham que podem tudo. Mas existem barreiras de civilização. Para rompê-las e discutir algo de uma forma mais ousada, é preciso ter um lastro. Não é como Leo Lins, que diz barbaridades. Infelizmente, muita gente vai assistir e avaliza.
Você disse que tem consciência da morte. Como lida com o tema?
À medida que nos aproximamos, pensamos cada vez mais na morte. Mas não tenho o desespero metafísico da finitude. É algo que entendi logo. Perdi muita gente. Tive, inclusive, que me despedir cedo da minha mãe.
Sua mãe foi responsável por sua formação literária. Não por acaso, você cursou faculdade de Letras e dirigiu monólogos sobre as escritoras Emily Dickinson (“Emily”), Karen Blixen (“A filha de Lúcifer”) e Florbela Espanca (“A bela do Alentejo”).
Minha mãe era professora de literatura francesa da UFRJ. Aos 10 anos eu disse que queria aprender francês. Ela me deu um dicionário e “Ondine”, peça de Jean Giraudoux. Quando morreu, encontrei o texto com as minhas anotações.
Lá em casa havia muita leitura e muita cobrança. Tanto que fiz terapia. E com Amílcar Lobo. Um dia, me deparei com ele na capa da revista Veja. Pensei que tivesse recebido algum prêmio internacional. Mas o motivo era que ele participava das sessões de tortura durante a ditadura. Evidentemente, não continuei na terapia.
Quando você perdeu sua mãe, a atriz Chica Xavier afirmou que ficaria no lugar dela…
E ficou. Nunca esqueceu de mim. A morte de pessoas próximas é dolorosa. Mas eu as interiorizo e elas me ajudam a começar alguma outra coisa. Quero escrever uma autobiografia — não tradicional, e sim a partir das grandes mulheres que cruzaram o meu percurso. Vou contar a minha vida através delas. O título será “Eu as tive em meus braços”.
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A família, tanto a de origem quanto a que foi constituída, é uma grande fonte de inspiração, não?
Quero escrever uma peça, “Guanabara”, sobre a família. As minhas tias por parte de pai eram ressentidas, mas muito engraçadas porque diziam absurdos sem se darem conta. Também conservavam a alegria. Elas vinham para a Ilha do Governador, onde eu morava, no verão, e eu já as olhava como personagens. Por isso, o universo feminino é tão forte para mim.
Meu pai tinha um perfil meio playboy. Minha mãe era sartriana, chamada de vermelha. Fui criado com liberdade entre esses mundos. Depois, meus filhos foram fundamentais — na minha trajetória e na saúde mental. Fiz sucesso logo cedo e eles me tiraram do lugar do “eu”. Eram duas vidas que precisavam ser orientadas, encaminhadas, formadas. Tracei limites rígidos, mas, dentro deles, tudo era possível. Eles me escrevem todo dia perguntando como estou.
Você cresceu na Ilha do Governador, Zona Norte do Rio, e o subúrbio carioca tem destaque especial na sua dramaturgia — na peça “No coração do Brasil”, nos seriados “Pé na cova”, “Sexo e as negas” e “Eu, a vó e a Boi”…
Há o falar carioca que nos irmana, o sabor do subúrbio. Morava na Ilha e levava uma vida simples de classe média da década de 1960. Tive um embasamento literário por causa da minha família, mas ninguém desejava acumular coisas. Era um outro mundo.
Em “A sabedoria dos pais” e “Fica comigo essa noite”, você trabalha com duas grandes parceiras e amigas, Natália do Vale e Marisa Orth. Como começou o contato com elas?
Eu e Natália nos aproximamos na novela “O outro”, em que fazíamos irmãos. Ficamos irmãos para a vida e lá se vão quase 40 anos. Conheci Marisa um pouco depois, quando contracenamos na montagem de “Algemas do ódio”. Ela tinha saído do underground paulistano para trabalhar na novela “Rainha da Sucata”, no Rio de Janeiro. Foi massacrada por causa disso.
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Você parece enxergar as relações e o futuro de forma esperançosa. Mas se considera nostálgico?
Totalmente. Minha astróloga disse que eu já nasci sabendo que a finitude é um fato. As crônicas que escrevia no GLOBO eram nostálgicas. Lembro de detalhes de lugares, de pessoas, que ficaram intocados. O personagem de “A sabedoria dos pais” observa: “Há dias em que visito um museu da minha própria existência.”
Por outro lado, sou alegre, brincalhão. Inventei uma história para mim. Criei um mundo e uma família, escolhi meus filhos. Tenho algo de positivo. Quando me mudei para São Paulo, depois que o meu contrato na televisão foi encerrado, pensei: “É para ir? Então serei feliz lá. Vou fazer amigos, aprender a andar na cidade.” E expandi o musical com diversos espetáculos.