Em mais uma mostra da crise entre o Executivo e o Congresso, o governo Lula tem medidas questionadas por integrantes da própria base em volume maior do que pelo PL, principal partido de oposição. Levantamento feito pelo cientista político Murilo Medeiros, da Universidade de Brasília (UnB), aponta que siglas aliadas da gestão petista, inclusive à frente de ministérios, protocolaram juntas, desde 2023,mais projetos de decretos legislativos (PDLs) — usados para questionar normas do Executivo —do que a legenda do ex-presidente Jair Bolsonaro.
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Na última quarta-feira, os parlamentares derrubaram decreto do presidente Lula que elevava o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Esse PDL é de autoria da oposição, mas, dos 383 deputados que votaram contra o Palácio do Planalto, dois terços são filiados a partidos com ministérios.
A última ação desse tipo ocorreu em 1992, quando foi derrubada uma decisão do então presidente Fernando Collor de Mello que previa o pagamento de precatórios por ordem cronológica dos pedidos. A rejeição da medida foi aprovada meses antes do impeachment de Collor. Nos últimos 30 anos, o Congresso aprovou 11 projetos de decretos legislativos, ou seja, apenas 0,3% do total apresentado.
Ao longo deste mandato de Lula, 315 propostas para sustar atos do Executivo foram protocoladas por partidos da base aliada, segundo o levantamento da UnB. Já o PL, que tem a maior bancada da Câmara, protocolou 308 iniciativas do tipo. A lista é puxada pelo Republicanos, que comanda o Ministério de Portos e Aeroportos, mas protocolou até o momento 78 PDLs. Entre os pontos questionados estão a orientação normativa publicada pela Advocacia-Geral da União (AGU) em abril que estabeleceu limites para a atuação de cônjuge do presidente da República, após críticas a viagens internacionais feitas pela primeira-dama Janja da Silva.
O União Brasil, que está à frente das pastas das Comunicações, do Turismo e do Desenvolvimento Regional, aparece em seguida com 73 PDLs. O mesmo número de contestações foi apresentado pelo PP, partido do ministro dos Esportes. A bancada da sigla contestou no início deste ano o decreto da Presidência que deu à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) poder de polícia. À época, a medida abriu uma nova frente de divergência entre o governo e o agronegócio, representado no Congresso pela Frente Parlamentar da Agropecuária e presidida pelo deputado Pedro Lupion (PP-GO).
Até o PT, do presidente Lula, apresentou oito projetos de decretos legislativos. Um deles, apresentado este ano pelos deputados Marcon e Alexandre Lindenmeyer, ambos do Rio Grande do Sul, tem o objetivo de sustar uma portaria dos Ministérios da Pesca e do Meio Ambiente que limita a cota de captura de tainha nas regiões Sul e Sudeste. A proposta foi anexada a outra de mesmo teor apresentada pela deputada bolsonarista Julia Zanatta (PL-SC).
Os números refletem, na análise do cientista político Murilo Medeiros, um cenário mais instável e de maior custo político para Lula, destoando do observado em governos passados do petista. Ao longo do primeiro mandato do presidente foram apresentados 116 PDLs e, no segundo, 140. Somados, são inferiores ao total de 706 iniciativas atuais para derrubar normas do governo. O crescimento foi de 175%. O montante enfrentado por esse governo só não supera, até o momento, os 1.506 PDLs apresentados durante a gestão Bolsonaro.
— Em comparação a outros momentos, Lula tem hoje uma base fragmentada e pouco fiel ao seu programa de governo. Com baixa popularidade e sem apoio das cúpulas dos partidos de centro, o governo é obrigado a negociar no varejo com os parlamentares a cada nova rodada de votação — analisa
A derrubada do aumento do IOF foi a maior derrota do terceiro governo Lula, mas não é um fato isolado. Na semana passada, o Congresso derrubou uma série de vetos de Lula. Entre eles o que excluía a previsão de contratação de usinas geradoras de energia da lei que regulamenta instalação de equipamentos para energia eólica em alto mar (offshore). Na prática, a medida deve aumentar a conta de luz, o que é visto no Palácio do Planalto como fator que pode afetar ainda mais a popularidade do presidente.
O Congresso também se prepara para instalar a CPI do INSS, que investigará descontos indevidos nas aposentadorias do INSS. A comissão deve provocar desgastes para o governo. A CPI recebeu apoio de 81 deputados de cinco partidos — União Brasil, PP, MDB, PSD e Republicanos — que têm ministérios.
Segundo Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper, há enfraquecimento da capacidade do Executivo de negociar e atender interesses de aliados, que tem desembarcado aos poucos do governo.
— Cada vez mais os partidos têm cobrado uma fatura alta, que não é atendida. Isso pode se estender até chegar em um momento limite, quando passam a entender que não faz mais sentido integrar a base. Em um contexto eleitoral, pode resultar na escolha de um candidato que não seja o Lula. Acredito o que está segurando isso no momento é fato da direita não estar muito organizada em torno de um único candidato, falta um consenso ainda — disse Consentino.
A lista de reveses do governo desde o início do mandato inclui o requerimento de urgência para o projeto de lei da anistia para envolvidos no 8 de Janeiro; a derrubada de um veto de Lula envolvendo as “saidinhas” temporárias de presos; e a manutenção de um texto do governo Bolsonaro que barrava a criminalização de fake news em eleições. Nesses episódios, as duas siglas que mais jogaram contra o governo foram União Brasil e PP, que posteriormente anunciaram a formação de uma federação com discurso oposicionista para as eleições de 2026.