Atualmente casa de patos, cotias e gatos, o Campo de Santana, no Centro do Rio, foi palco das cerimônias de aclamação de Pedro I (1822) e Pedro II (1841), assim como da Proclamação da República, em 1889, por exemplo. Já o Passeio Público, na Lapa, foi o primeiro projeto urbanístico da cidade voltado para o lazer, além de primeiro parque público das Américas. Ainda em 1888, o Barão de Drummond fundou o jardim zoológico em Vila Isabel, algo inédito no país. Além de históricos, os três espaços têm em comum uma sina: estão sendo depenados por criminosos, que não poupam sequer as grades que deveriam protegê-los — uma cena recorrente na cidade.
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No Campo de Santana, as setas de metal que fazem o belo acabamento na parte de cima das grades estão desaparecendo. Num trecho de 30 metros, entre o portão diante da Faculdade Nacional de Direito (FND) e o ponto em frente ao antigo Palácio da Saúde, das 200 ponteiras, 125 já foram furtadas.
— Só roubam isso de noite, porque não tem ninguém, não tem polícia — reclama o pipoqueiro Ronaldo Lazzarotto, que trabalha no Centro.
No fim do século XIX, o local passou por uma intervenção paisagística de Auguste Glaziou, que importou da França, entre outras coisas, o gradil, substituído com a abertura da Avenida Presidente Vargas, e os quatro portões, mantidos até hoje. Sobre essas entradas, foram instalados brasões. Dois deles, explica a Secretaria municipal de Conservação (Seconserva), caíram após acidentes de trânsito: um está guardado para reparo, o outro foi perdido.
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Esse é só um exemplo de que, em vez de cercar e dar segurança, as próprias grades não têm resistido aos criminosos, que vendem as peças em ferros-velhos. As setas estão desaparecendo ainda na Praça Paris, na Glória, e no Passeio, onde partes das grades voltadas para a Praça Mahatma Gandhi também estão sumindo. Em Vila Isabel, por sua vez, o Recanto do Trovador (antigo jardim zoológico) teve partes inteiras das grades — aquelas que saíram do Campo de Santana — furtadas. Até março de 2023, elas ainda estavam lá, como mostra o Google Street View.
— Nós viramos escritores de obituários. Estão morrendo o Passeio Público, o Campo de Santana, o de São Cristóvão… — lamenta o historiador Nireu Cavalcanti. — São lugares de uma importância fundamental para a História do Rio, da sociedade brasileira, do Império, da República, do paisagismo da cidade e para a história do lazer público.
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Segundo ele, muitas edificações surgiram após grandes reformas urbanas. São Cristóvão, como cita, foi o bairro escolhido para receber o campo de treinamento do Exército, assim como o Museu Nacional, ambos localizados antes na área do Campo de Santana. Nos últimos anos, a balaustrada de ferro francês, em frente à unidade do Colégio Pedro II no bairro, vem sendo furtada, enquanto o coreto no Campo de São Cristóvão já não tem mais grades. A Seconserva informa que peças preservadas do guarda-corpo do coreto servirão de molde para as substitutas. Já em relação à amurada, foram feitos registros na polícia em 2021, informa a pasta, que “trabalha para futuras providências” no local.
Ainda conforme a secretaria, os parques citados pela reportagem “vêm sendo alvos de furtos desde 2015” e as reposições são possíveis a partir de peças que podem servir de modelo. Outra opção tem sido a busca por materiais alternativos.
Já na Rua Ana Neri, no Rocha, o gradil ao longo da linha férrea está prestes a desaparecer. No local, onde existiu uma estação no passado, já há “vazios” que somam cerca de 200 metros de extensão. Vizinhos apontam usuários de drogas como autores dos crimes, que se intensificaram a partir do ano passado.
— No início, eu tentava pará-los. Mas falava com um e, no dia seguinte, vinha outro. Agora, chega a noite, eles começam a rodar. Também roubam os fios — conta o segurança de um estabelecimento próximo, que preferiu não se identificar.
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O local “sofre constantes furtos e atos de vandalismo” que impactam a operação, diz a SuperVia, acrescentando que fará os reparos.
— Como a pessoa consegue identificar a História da cidade em que vive, se não consegue ver os elementos? O artigo 163 do Código Penal aponta como crime destruir ou deteriorar o bem público. Infelizmente, o Rio está vivendo um caos urbano tão grande em relação à segurança que não consegue dar conta desses pequenos danos, que são enormes — avalia a arquiteta e urbanista Luciana Mayrink, integrante do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio.
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No Centro, um trecho de 300 metros em torno da Praça Noronha Santos, que dá acesso ao Elevado Trinta e Um de Março, está praticamente sem grades. Em maio de 2023, elas ainda estavam instaladas, como mostra o Street View. Na última semana, a equipe do GLOBO flagrou suspeitos carregando barras da grade em plena Avenida Presidente Vargas.
Nem a Pira Olímpica, da Rio-2016, escapou. A grade que a cercava foi furtada em 2019. Houve registro de ocorrência na ocasião, diz a Seconserva. Depois, o lago que ficava embaixo da pira foi aterrado e foi adotado um novo paisagismo (sem grades). Segundo Marconi Andrade, presidente do grupo SOS Patrimônio, essas grades foram encontradas pela prefeitura num ferro-velho próximo à Central do Brasil.
De acordo com a Secretaria municipal de Ordem Pública (Seop), desde 2021, já foram apreendidas 137 toneladas de fios de cobre e outros metais, em ferros-velhos: 160 deles foram interditados, enquanto 62 pessoas foram encaminhadas à delegacia. Já a Polícia Civil afirma que só a Delegacia de Roubos e Furtos fiscalizou mais de cem ferros-velhos no estado, desde setembro, e que os responsáveis foram autuados em flagrante em 90% deles. A PM, por sua vez, informa que “o combate aos roubos e furtos do patrimônio público e privado tem sido uma das principais metas de atuação do comando da corporação”.