Esparramado no sofá de seu apartamento no Jardim Paulista, bairro chique de São Paulo, o maestro João Carlos Martins diz que “um cara que gravou as principais obras de Bach”, como ele, “a princípio deve ser meio careta, que não aceita outros gêneros”.
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— Mas sempre defendi que só existe um tipo de música: música bem-feita — explica.
De supetão, o fundador da Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi-SP se ergue do sofá e se acomoda ao piano para provar que fala sério. A melodia delicada de “Luiza”, de Tom Jobim, enche a sala. Os raios de sol daquele fim de tarde se projetam timidamente no pianista, que não tira os olhos do teclado. Seu rosto se contrai, às vezes surge um sorriso discreto, e ele não esconde a satisfação ao tocar. Depois de “Luiza”, emenda “Libertango”, do argentino Ástor Pizzolla, e trilhas dos filmes “A lista de Schindler” e “Cinema Paradiso”, compostas por John Williams e Enio Morricone.
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— Todos eles são compositores populares que se tornaram clássicos — afirma.
O pianista tocou para o GLOBO parte do programa a ser apresentado em 9 de maio no Carnegie Hall, em Nova York. Ele vai reger a NOVUS, orquestra de uma igreja anglicana de Wall Street, executando obras de Villa-Lobos e de Bach, e em seguida dedilhar seus “clássicos populares” no piano. Será a 30ª vez dele no Carnegie Hall, onde estreou aos 21 anos. E também a última. Ele está se aposentando dos palcos internacionais.
Nesta quarta-feira (30), às 20h30, Martins e a Bachiana Filarmônica apresentam o mesmo programa na Sala São Paulo. Não será um concerto de aposentadoria, mas o anúncio de uma transição profissional. O maestro pretende diminuir drasticamente o ritmo.
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— Não dá mais para encarar cem apresentações e 70 ensaios por ano, entende? — diz ele, que em março passou por uma cirurgia para extirpar um câncer na próstata.
Festejado como um dos maiores intérpretes de Bach no mundo, fundador de uma orquestra e inspiração de uma biografia (“O indomável”, de Jamil Chade), dois documentários (um franco-alemão e um belga) e um filme (“João, o maestro”, de Mauro Lima), Martins acha que ainda não construiu um “legado”. É a isso que ele quer se dedicar a partir de agora.
— Aos 85 anos, começo uma nova carreira, de educador musical. Quero realizar o sonho de Villa-Lobos — afirma, sobre o projeto do compositor modernista de difundir a música nas escolas brasileiras.
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Junto com uma equipe, ele está colocando de pé o Projeto de Musicalização Maestro João Carlos Martins, que propõe exercícios de introdução à música para alunos do ensino fundamental. Violinista, professor de musicalização e parceiro do maestro no projeto, Eduardo Maueski explica que o objetivo é apresentar “conceitos musicais” às crianças, incentivando a vivenciá-los por meio de brincadeiras de até 15 minutos nas aulas de educação artística. Em vez de instrumentos musicais, as dinâmicas aproveitam objetos disponíveis nos colégios, como pedaços de madeira e papel. As aulas já ocorrem em duas escolas privadas de São Paulo, a Exatus e o Liceu Pasteur Start Anglo.
— A musicalização contribui para o desenvolvimento integral da criança, melhorando o raciocínio lógico, a coordenação motora, a concentração, a socialização — explica Maueski.
Martins também planeja lançar programas para incentivar o empreendedorismo entre músicos e compartilhar o que ele aprendeu cuidando de sua saúde mental.
— Aos 29 anos, entrei na banheira em Nova York para me suicidar depois de uma crítica ruim. O telefone tocou e era o meu professor de piano, foi isso o que me impediu — conta. — Convivo com a dor há 63 anos. Mas ainda estou aqui e acho que minha história pode inspirar outras pessoas.
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A crítica que desestabilizou o jovem pianista saiu no New York Times em 1970: o resenhista escreveu que o brasileiro parecia “perturbado” naquela noite no Lincoln Center. Martins começou a perceber movimentos involuntários da mão direita aos 16 anos. No correr dos anos, o sintoma se intensificou — junto com a dor. Os médicos disseram que era psicológico, e ele chegou a procurar um psicanalista nos Estados Unidos, mas não resolveu. Para seguir tocando, aprendeu a “driblar o cérebro”: mudava a posição das mãos no teclado para aliviar o desconforto. Se a dor era intolerável, cancelava os concertos.
Depois da crítica negativa do Times, desistiu da música. Tornou-se empresário de boxe — trouxe o título mundial para o país com Eder Jofre, e só retomou a carreira de pianista em 1978, quase uma década depois. O palco de seu renascimento foi justamente o do Carnegie Hall. Mas a dor ainda o atormentava e ele se submeteu a uma cirurgia atrás da outra (foram 31 até hoje). Só em 2002, o médico Paulo Niemeyer o diagnosticou com distonia focal, distúrbio neurológico raro que provoca contrações musculares involuntárias.
Na época, ele não conseguia mais tocar, e o regente Eleazar de Carvalho lhe apareceu em sonho. Como se fosse o anjo torto do poema de Drummond, disse: “Vai ser regente na vida.” Ele obedeceu e fundou a Bachiana Filarmônica.
— Nossa orquestra formou muito público. Eu falo para os músicos: “Temos que tocar na favela com a mesma garra com que tocamos no Municipal” — diz ele, que está à procura de alguém para substituí-lo na regência. — Continuo como diretor artístico da Bachiana. Procuro um regente jovem e carismático, que respeite a partitura e a interpretação dos músicos, e que consiga transmitir emoção mesmo de costas para a plateia. O público tem que dizer: “Esse cara dá a vida.” Eu dou a vida quando me sento ao piano.
Titular da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, o maestro Roberto Minczuk descreve Martins como “o maior ícone da música clássica brasileira”.
— Além de ser um profundo conhecedor da música, ele é um grande intérprete, com uma liberdade de expressão inovadora, que mexe com a gente — elogia Minczuk, que não compra a história de que Martins ainda não tenha um legado. — João já fez o suficiente para cinco vidas, a genialidade dele é saber se reinventar. Eu brinco que, como maestro, ele está três níveis acima de mim. Moramos no mesmo prédio, eu no oitavo e ele no décimo primeiro.
Hoje, Martins consegue tocar usando uma “luva biônica”, criada pelo designer industrial Ubiratan Bizarro Costa e inspirada naquelas de pilotos de Fórmula 1. A luva mantém seus dedos estendidos, impedindo contrações involuntárias. Ele perdeu a velocidade do passado, quando quase batia 20 notas por segundo, e agora se concentra em peças mais lentas. Tocar ainda dói, mas ele se arrepende de todas as vezes que se afastou do piano.
— Não falo muito sobre isso, mas para mim a música transmite uma mensagem divina — diz Martins. — Sou espírita. Minha mãe era médium e, quando eu era criança, antes dos meus concertos, baixava nela o espírito de (Giuseppe) Verdi (compositor italiano) e eu me entusiasmava para tocar. Sempre digo que a música prova que Deus existe. Se esse Deus é católico, budista ou sei lá o quê, não me interessa. Eu quero é transmitir a mensagem.