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Dentre os efeitos colaterais da guerra comercial iniciada pela Casa Branca contra o restante do planeta, um dos mais danosos para os republicanos, apontam observadores da política americana, foi dar de bandeja à oposição algo que o Partido Democrata fora até então incapaz de encontrar: uma mensagem que simplifica e amplia a insatisfação com o trumpismo para além dos suspeitos de sempre.
Foi uma coincidência auspiciosa, nas palavras do diretor do Centro de Pesquisas de Ativismo da Universidade de Nova York (NYU), Stephen Duncombe, a data escolhida há semanas pelos 150 grupos que organizaram os protestos ter caído três dias após o anúncio teatral de Trump sobre as tarifas a serem impostas aos países para vender no imenso mercado americano, no que ele batizou de “Dia da libertação” dos EUA.
Quando a multidão estimada pelos organizadores em 600 mil pessoas tomou as ruas de grandes centros como Nova York e subúrbios diminutos como Tigard, no Oregon, a mídia e as redes sociais já estavam tomadas por análises e explicações mais ou menos exatas de como a desengonçada tabela apresentada pelo presidente nos jardins da Casa Branca se traduziria no encarecimento de roupas, tênis, iPhones, abacates, tortillas, aluguéis, carros e brinquedos, entre milhares de outros itens.
A montanha-russa das ações já desesperara os milhões que atrelaram a elas suas aposentadorias. E a prometida taxação das farmacêuticas significaria o aumento do preço dos remédios. Enfurecidos eleitores adicionaram ao “tire as mãos” da Constituição, da Justiça, das liberdades individuais e da democracia, o nada abstrato “do meu bolso”.
— O timing certeiro impulsionou a capilaridade dos protestos. Nós, americanos, não somos conhecidos pela paciência e reagimos mais enfaticamente ao assalto do dinheiro do que ao das ideias. Na era da gratificação imediata, fica difícil imaginar quem, além dos fiéis do Maga (sigla em inglês para o movimento “Faça os EUA grandes novamente”), irá comprar resignado a narrativa da Casa Branca de que sacrifício agora irá resultar em um país mais forte depois, como se estivéssemos enfrentando o nazismo na Segunda Guerra Mundial. Trump se viu sem guarda-chuvas em uma tempestade perfeita— disse Duncombe ao GLOBO.
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Do ponto de vista da oposição, diz o especialista em manifestações populares, vive-se o terceiro e decisivo ato de um espetáculo apresentado em tempo recorde. No primeiro, o senador Bernie Sanders e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez levaram a esquerda para a rua provando que o contraditório não se restringia a um punhado de juízes e governadores. No segundo, o senador Cory Booker tomou para os democratas a retórica do tempo, ao contrapor à velocidade paralisante de atos executivos da Casa Branca seu discurso de 25 horas no Capitólio “para caber os erros do governo”.
— O anti-trumpismo aposta agora na reação popular ao caos gerencial do enxugamento do governo por Elon Musk, que privou as pessoas de serviços essenciais, e na subversão, com o tarifaço, da promessa central da vitoriosa campanha do republicano ano passado: colocar mais dinheiro no bolso dos cidadãos. A mensagem está pronta, mas não pode vir com termos complexos para a maioria dos eleitores, como cadeia de suprimentos global ou mercado de capitais. É só pegar a dos cartazes do Hands Off! — sugere Duncombe.
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O tema já avançou para uma das principais disputas eleitorais deste ano nos EUA, a de governador da Virgínia. Na última quinta-feira, horas antes do recuo de Trump sobre a imposição das tarifas recíprocas, com exceção da China, os democratas apresentaram suas duas primeiras peças estaduais de campanha. Uma trazia um áudio do virtual candidato republicano elogiando a guerra comercial dentro da retórica nacionalista de defesa do país “abusado por décadas por todo o planeta”. A outra repetia a palavra “tarifa” seis vezes, com um X vermelho e imagens de caos nas Bolsas, e carteiras vazias.
Coordenador no estado decisivo da Pensilvânia de um dos mais musculosos grupos ativistas do flanco democrata, o Swing Left, Mete Egerman se juntou ao Hands Off! de Filadélfia no final de semana passado e pondera que o terceiro ato apontado por Duncombe ainda está no começo. E seu fim é incerto.
— Nas ruas, os potenciais efeitos das tarifas de fato já ampliaram a coalizão democrata e provavelmente a engordarão ainda mais nos protestos do próximo sábado. Por outro lado, a mensagem ainda é fluida, tal qual as idas e vindas do governo Trump sobre o tema — disse ao GLOBO.
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Economistas concordam que os efeitos do vaivém de Washington sobre o tarifaço só serão sentidos de fato no bolso dos americanos nas próximas semanas. E que sua real dimensão ainda é nebulosa. Ainda assim, a expectativa da oposição é que a previsão de alta de inflação, do custo de vida e do desemprego, uma provável recessão, e menor crescimento do PIB, multipliquem a desaprovação ao governo e os embale para vencer as eleições legislativas no ano que vem.
A percepção de que o tiro do tarifaço pode ter saído pela culatra para a Casa Branca no tabuleiro político americano aumentou com a divulgação de pesquisas de institutos importantes nos últimos dias. Na quinta-feira, o da Universidade Quinnipiac mostrava rejeição de 53% a Trump, aumento de 4 pontos percentuais em relação à consulta anterior, em fevereiro. E 72% afirmavam que o tarifaço prejudica mais do que ajuda a economia do país. Mais: 77% dos que se identificam como “independentes”, decisivos para a vitória nas eleições, creem que a guerra comercial de Trump deixará a economia americana pior a curto prazo. Destes, 57% também veem dano a longo prazo.
Um dia antes, a YouGov/Economist mostrara rejeição ligeiramente menor a Trump do que a Quinnipiac, de 51%, mas com queda de 5 pontos percentuais em uma semana, justamente a do anúncio do tarifaço. Desde a posse, em janeiro, já são 14 dígitos a menos. Em um mês, caiu em 10 pontos a aprovação do governo no quesito economia e em 8 no combate à inflação. Até a Rasmussen, que colhe dados diariamente e com amostra do eleitorado mais à direita, registrou a pior sequência de dias para Trump desde a posse: imutáveis 52% de narizes torcidos para o presidente.
Ao ânimo democrata, a Casa Branca dobrou a aposta na retórica ufanista: “Se eles veem oportunidade política em nossa defesa histórica do cidadão comum contra os abusos da China e na restauração da grandeza dos EUA, estão rumando para uma derrota ainda pior no ano que vem”.

