O budismo mahayana tem um provérbio importante:

— Uma pessoa aponta para a Lua, mas outra olha para o dedo. Assim, perde não só a Lua, como também o significado do dedo.

O debate público no Brasil sobre o uso da biometria da íris como forma de identificação evoca o ensinamento do provérbio.

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No Brasil, identificar alguém hoje virou tarefa cara e difícil. A razão principal é que todos os dados dos brasileiros vazaram na internet, no que chamei de “o vazamento do fim do mundo”. Bandidos conseguem hoje na internet em segundos os dados de qualquer um: nome, endereço, CPF, RG e outros. Nos tornamos o paraíso dos golpes na internet. A indústria dos golpes cresce a cada ano e floresce graças ao colapso do sistema de identidades do país.

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Como não dá para confiar nos documentos para certificar a identidade, inúmeras empresas passam para outras estratégias: análise contextual de dados, reconhecimento biométrico e assim por diante. Vários aplicativos e sites exigem reconhecimento facial para fazer qualquer transação. É cada vez mais comum que as portarias de prédios comerciais e até estádios de futebol exijam o reconhecimento facial.

É nesse contexto que a World trouxe seu serviço para o Brasil. Ele é um dentre inúmeros outros serviços ou mesmo empresas, grandes e pequenas, que usam biometria para estabelecer a unicidade de alguém. Tem como propósito específico provar que uma pessoa é humana e única, e não um robô, uma inteligência artificial ou um golpista se passando por ela.

Diferentemente de outros inúmeros serviços que fazem o mesmo no Brasil, a World teve de pausar sua operação no país. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) não permitiu a oferta de um incentivo: conceder criptoativos a quem aderisse ao seu serviço. A ANPD entendeu que esse incentivo prejudicaria o consentimento dos usuários.

Discordo do argumento. O que prejudica o consentimento é justamente o contrário: coletar marcadores biométricos sem oferecer qualquer benefício claro. Como ocorre quando não há alternativa para subir ao consultório médico além de a face ser registrada na entrada e na saída do prédio — sem explicações, sem informações sobre quem é o controlador dos dados e sem esclarecimentos sobre medidas técnicas de proteção. A World faz tudo isso exaustivamente: oferece explicações e informações claras sobre o controle dos dados e adota medidas técnicas de proteção.

Em vários países, os sistemas de identidade funcionam. A Índia usou justamente a coleta da íris, aplicada em 1,2 bilhão de pessoas, para criar sua identidade nacional chamada Aadhaar. Nesses países, o espaço para um serviço como o da World é muito pequeno. No Brasil, o serviço poderia aumentar significativamente a segurança das transações digitais e diminuir golpes, num contexto de inércia do poder público. Por essa razão, quando os serviços da World são suspensos no Brasil, lidamos com uma ilusão coletiva de projetar nossa insatisfação e insegurança na empresa, como se ela fosse problema e não parte da solução. Olhamos para o dedo e perdemos a Lua.

*Ronaldo Lemos, advogado, professor e pesquisador, é especialista em tecnologia, mídia e propriedade intelectual e fundador e cientista-chefe do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

Visão errada da biometria da íris