Diretor do longa que deu o primeiro Oscar ao Brasil, o de melhor filme internacional por “Ainda estou aqui” (2024), Walter Salles será homenageado neste sábado, 18 de outubro, pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Todo ano, a instituição escolhe quatro personalidades para receber o tributo no Academy Museum Gala. Salles faz parte do time que este ano tem ainda a atriz Penélope Cruz, o ator e comediante Bowen Yang e o cantor e compositor Bruce Springsteen, que terá sua cinebiografia lançada este mês. Um dia depois de receber o Luminary Award no evento do Museu da Academia, Walter Salles participa de conversa com Kleber Mendonça Filho, o cineasta que, com seu longa “O agente secreto” (2025), é a nova aposta para deixar o Brasil novamente em clima de Copa do Mundo na campanha pelo Oscar 2026. O encontro acontece na abertura do Bravo Film Festival, evento de cinema brasileiro em Los Angeles no qual Walter Salles é o mestre de cerimônias e que terá exibição de “O agente secreto” antes do debate que reúne os dois brasileiros e a francesa Emilie Lesclaux, produtora do filme e casada com Kleber.
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A seguir, o diretor de “Anda estou aqui”, um filme Original Globoplay, fala de como pode ajudar a nova campanha do Brasil pelo Oscar, de sua nova empreitada, uma série sobre o jogador de futebol Sócrates (1954-2011) para o Globoplay, e de como enfrentar o problema do grande volume de filmes brasileiros que ninguém vê, num cenário em que os sucessos são exceção.
A série “Sócrates Brasileiro” está em qual estágio de produção? Está pronta?
Depois de um filme de ficção, busco voltar ao documentário. “Ainda estou aqui” foi certamente influenciado pela troca que tive com Jia Zhangke em “Um homen de Fenyang” (doc de Walter Salles sobre o diretor chinês). Poder mergulhar agora na série sobre Sócrates foi um presente que Raí e seus irmãos me deram. A história de Sócrates é a da migração interna nos anos 50 e 60, a história de um país que tentava se definir pelos seus próprios critérios estéticos e políticos. A de um outro país possível, onde afloravam uma nova arquitetura com Niemeyer e Lúcio Costa, uma nova educação com Paulo Freire, o Cinema Novo, o início da Tropicália com Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, e por aí vai. Um país onde dois pais autodidatas dão o nome de Sócrates Brasileiro ao seu primeiro filho. A série dialoga com “Ainda estou aqui”, é também sobre memória e democracia — e, é claro, sobre futebol e identidade brasileira. Ainda filmo uma entrevista para a série com o Juan Pablo Sorín, jogador argentino que jogou muito tempo no Brasil. Ele é um cara maravilhoso, superinteligente, articulado, e ama cinema. Acho que fica pronto até o final do ano.
Como pretende encaixar o seu apoio a “O agente secreto” na agenda?
“O agente secreto” tem todas as qualidades para ter uma vida longa nas diferentes premiações que se avizinham. É extremamente bem dirigido e atuado, aborda temas centrais ao Brasil mas também no mundo contemporâneo. Como todos os grandes filmes, tem múltiplas camadas. É ao mesmo tempo muito singular e universal. Essa polissemia é fundamental para que um filme não perca fôlego ao longo dos meses. Na trajetória de “Ainda estou aqui”, os debates em diferentes festivais e países foram fundamentais. Os prêmios foram a consequência dessas trocas, e não um fim em si. No caso de “O agente secreto”, Kleber é um grande cineasta e um pensador brilhante. Wagner é um ator excepcional e é muito carismático. E Emilie Lescaux, produtora do filme, tem uma extrema sensibilidade. No que eles quiserem, estarei sempre pronto a ajudar. Em debates, ou fazendo a ponte com quem abraçou “Ainda estou aqui” nessa jornada.
O caso de “Ainda estou aqui” e agora “O agente secreto” colocaram o cinema brasileiro em evidência, mas a maior parte da produção anual nacional sequer consegue um lugar nas salas. Tem ideia de como transformar essas exceções em regra?
Acho que o ponto de partida para responder essa pergunta é, primeiro, tentar fomentar o retorno dos núcleos de desenvolvimento de roteiros. “Ainda estou aqui” foi um projeto desenvolvido coletivamente por um núcleo em que dez projetos eram analisados por dez diretoras e diretores daquele grupo, com contribuições de escritores como Bernardo Carvalho, por exemplo. Então, o roteiro de “Ainda estou aqui” deu um salto qualitativo enorme durante esses quase dois anos em que esse núcleo existiu. Núcleo que foi coordenado por Marcelo Gomes e pelo Karim Aïnouz. Tínhamos a Sandra Kogut, a Flávia Castro, o Gabriel Mascaro, o Gregório Duvivier, e uma série de pessoas que estavam constantemente opinando sobre o trabalho dos outros. E esse fazer coletivo realmente exponencializou vários projetos que ali estavam em discussão. Outro ponto importante é destravar o processo de financiamento, para que o cinema não viva de ciclos curtos.
Uma situação que se agravou com a pandemia.
Muitos dos projetos que estão nascendo hoje são projetos que começam a ser gestados durante a pandemia. Que reagem um pouco àquilo, acho. Encontrei há pouco uma produtora fundamental para a cinematografia brasileira, que é a Sara Silveira (“Bicho de sete cabeças”, “Vazante”), que me falou da dificuldade que ela está tendo para tornar os filmes que desenvolve possíveis. Aprendi imensamente com os filmes que ela produziu. É um desperdício muito grande uma produtora com talento e com sensibilidade e a inteligência radical da Sara não estar filmando continuamente. Então, não sei em que ponto a coisa está represada, ou o que represa esse processo, mas o fato é que, quando uma produtora como a Sara não está filmando, isso mostra que há alguma coisa errada no sistema. Repito: acho que a saída para isso é reorganizar essa possibilidade de pensar no cinema coletivamente através dos núcleos de desenvolvimento de roteiros. Um pouco a exemplo do que o Sundance fez com a gente na época de “Central do Brasil”. E a outra é ter inteligência nessa continuidade, ter uma percepção de que o cinema não pode viver de espasmos.
O que podemos esperar depois de “Sócrates Brasileiro”?
Tenho um roteiro de ficção no qual venho trabalhando há cinco anos praticamente pronto, mas não quero pensar agora se ele será ou não o meu próximo filme de ficção. Intuo, aliás, que não. Preciso de um pouco de tempo para ouvir os outros, e me ouvir.
Você foi o escolhido para receber o Grand Prix Fipresci 2025, o prêmio de melhor filme do ano pela crítica internacional, no Festival Cinema de San Sebastián, na Espanha. Um ano ano depois da estreia no Festival de Veneza, ainda consegue ser original com os discursos?
De certa forma, você vai agregando camadas de interpretação ao filme, graças às críticas que você lê, graças às perguntas do público, graças à opinião de espectadores que estão na sala vendo um filme, às vezes a 10 mil quilômetros de distância, mas que te contam a quente, à flor da pele, o que foi a experiência deles. A gente ouviu muito nessa caminhada. Por exemplo: alguém dizer que a família do “Ainda estou aqui” a fez lembrar da própria família. E, às vezes, era alguém que vinha da Índia, alguém que vinha do interior dos Estados Unidos, alguém da Itália. O distribuidor italiano do filme me disse que aquele primeiro ato da história, que coloca o espectador no mundo da família Paiva, de certa forma ecoou experiências pessoais. Acho que, ao longo desse ano, a compreensão do filme se ampliou e, ao mesmo tempo, agregou elementos de que não suspeitava no ponto de partida, ainda não verbalizados. O (escritor) Borges dizia, por exemplo, que o que interessava para ele na literatura era de nomear aquilo que ainda não tinha sido nomeado. E, às vezes, nesses debates, ou em uma crítica, você, de repente, vê alguém nomeando algo em relação ao filme que ainda não tinha sido localizado. E assim se agregam camadas interpretativas que alimentam uma jornada.