Antes de a primatologista Jane Goodall começar sua pesquisa de campo, na Tanzânia, pouco se sabia sobre os chimpanzés. Ela foi a primeira pessoa a documentar, por exemplo, esses animais adaptando ramos de plantas para “pescar” cupins, mostrando que o homo sapiens não é a única espécie capaz de criar ferramentas. Ela também comprovou que chimpanzés não são vegetarianos, mas, sim, criaturas onívoras que podem se alimentar de plantas e de outros animais, como macacos bonobos.
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Entre as principais descobertas da britânica, que morreu na semana passada, aos 91 anos, está ainda o lado cruel da natureza dos chimpanzés. Até a década de 1970, acreditava-se que essa espécie era essencialmente pacata. Entretanto, no início de sua pesquisa no Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia, Goodall observou os animais se comportando de forma agressiva para defender ou invadir territórios. E um grau de violência muito maior seria testemunhado a partir de 7 de janeiro de 1974.
Naquela tarde, o chimpanzé batizado de Godie pela primatologista estava comendo frutas em uma árvore quando foi cercado por oito animais. O grupo arrancou Godie lá de cima e o atirou no chão. Os agressores o espancaram durante cerca de 10 minutos, usando uma pedra para infringir ferimentos e até mesmo tentando arrancar um de seus membros. Deixada agonizando, a vítima, eventualmente, levantou-se e saiu andando, mas nunca mais foi vista. De certo, morreu por causa dos ferimentos.
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Lutas entre animais da mesma espécie ocorrem com frequência, mas quase sempre devido a disputas por fêmeas, alimento ou território. E quase nunca resultam em morte. A brutalidade organizada e a sangue frio que Godall testemunhou naquela tarde era algo inédito para a ciência. Como chimpanzés são nossos ancestrais, segundo a teoria da evolução das espécies, aquele tipo de violência entre eles pode ajudar a entender as origens da agressividade entre os homo sapiens.
O episódio marcou o começo do que Goodall definiria como a Guerra dos Chimpanzés do Gombe ou a Guerra dos Quatro Anos, um duro conflito entre dois grupos de animais que antes faziam parte de uma mesma comunidade. Foram quatro anos de assassinatos sistemáticos até que todos os machos adultos de um grupo foram mortos ou fugiram. A série de hostilidades foi única “guerra civil” registrada no mundo animal. Segundo Goodall, o evento aproxima ainda mais os chimpanzés dos humanos.
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O conflito começou a se delinear em 1971, com a morte do macho alfa de uma comunidade de cerca de 50 chimpanzés na região de Kasakela. O macho Humphrey assumiu o posto de líder, mas, pouco depois, dois irmãos, Charlie e Hugh, começaram a desafiar a posição dele. A comunidade acabou se dividindo em um grupo leal a Humphrey e outro fiel aos dois irmãos. Eles continuaram convivendo na mesma área até que o grupo de Charlie e Hugh, menos numeroso, se deslocou para o Sul do território.
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Até então, nada de incomum. Grupos de animais se dividem e se afastam com frequência na natureza. O comportamento surpreendente começou na tarde de 7 de janeiro de 1974, quando oito chimpanzés da comunidade maior foram na direção Sul do parque e espancaram Godie até a morte. Os agressores, então, celebraram a vitória balançando e arremessando galhos e gritando. Aquele tipo de ataque, calculado e aparentemente sem motivo, nunca tinha sido testemunhado no reino animal.
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A partir de então, os chimpanzés do maior grupo atacaram e mataram, um a um, todos os machos do bando de dissidentes, com exceção de dois, que fugiram e nunca mais foram vistos. Em seguida, as fêmeas da comunidade separatista foram mortas ou sequestradas, depois de espancadas, e o grupo mais numeroso ocupou o território dos dissidentes. Pouco depois, porém, eles foram expulsos por uma comunidade ainda maior e retornaram a sua antiga área, mais ao Norte do Gombe.
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As táticas guerreiras do conflito mostraram que a violência calculada não é algo exclusivo de seres humanos. Os ataques do maior grupo de chimpanzés contra seus adversários não foram aleatórios. Os agressores esperavam até que suas vítimas estivessem sozinhas e as assaltavam com crueldade. Em um dos assassinatos, Jane Goodall descreveu como o chimpanzé batizado de Satã enfiou a mão em um grande ferimento na face de um inimigo durante o ataque e bebeu o sangue dele.
“Por tantos anos eu imaginei que os chimpanzés, apesar das muitas semelhanças com os humanos, eram muito mais pacatos que nós. De repente, eu descobri que, sob determinadas circunstâncias, eles podem ser tão brutais quanto nós e que eles também têm um lado sombrio na sua natureza”, escreveu Jane Goodall em seu livro “Uma janela para a vida: 30 anos com os chimpanzés da Tanzânia”.
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Ao longo dos anos, surgiram questionamentos ao trabalho da primatologista, que havia estabelecido estações de alimentação para facilitar a observação dos animais. Críticos afirmam que essa medida pode ter interferido no comportamento do grupo de chimpanzés que entrou em guerra.
A descrição do conflito no Gombe contribuiu para o conhecimento da própria espécie humana. Existe um debate sobre as origens da agressividade entre os homo sapiens. Alguns pesquisadores teorizam que nos tornamos violentos por consequência da civilização e das estruturas sociais, devido a fatores como desigualdade e marginalização. Mas a crueldade dos chimpanzés do Gombe contra seus ex-companheiros mostra que a violência pode ser uma característica inerente dos seres humanos.