Entre soluções improvisadas com camas compartilhadas e emprestadas, Belém tenta ficar pronta para a COP30, daqui a três meses, em meio à crise de hospedagens que se intensificou com as queixas formais de dezenas de países nas últimas semanas. Agora, uma nova frente de críticas surgiu com a oferta de leitos que precisarão ser divididos: na plataforma oficial do governo federal, há opções de quartos para quatro pessoas com apenas duas camas disponíveis. Enquanto isso, moradores da capital, a fim de melhorar a imagem da própria cidade e reagir aos preços altos cobrados nas diárias, se mobilizam para oferecer hospedagem gratuita em suas casas.
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A plataforma lançada, com atraso, pelo governo indica que os participantes podem precisar dividir as mesmas camas durante a conferência. Tanto em apartamentos e hotéis quanto nos navios de cruzeiro disponibilizados para acomodação, quartos para até quatro pessoas, por exemplo, descrevem ter somente duas camas de casal. A constatação de que há menos camas do que o número máximo de ocupantes nesses casos pode ser feita pelas próprias fotos disponibilizadas na plataforma de hotéis.
Em uma publicação nas redes sociais, o jornalista Mike Szabo, cofundador da Carbon Pulse — site britânico sobre mudanças climáticas —, se queixou da condição. Ele afirma que, ao tentar efetuar reservas, constatou que não há leitos individuais suficientes para a quantidade de quartos. “Tudo isso, provavelmente, irritará ainda mais os possíveis participantes, incluindo grandes delegações governamentais que deixaram bem claro que seus funcionários não compartilharão quartos, muito menos camas”, escreveu.
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Um integrante da organização da COP, ouvido reservadamente pelo GLOBO, também disse que a ideia de dividir quartos não foi bem vista pelos países participantes. Ele cita que o problema se soma ao fato de que as negociações do evento vão ser estressantes e cansativas — as reuniões costumam ser longas, com duração até a madrugada.
Há uma semana, o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis do Pará (ABIH-PA), Antônio Santiago, afirmou que a crise das hospedagens estaria resolvida caso integrantes das delegações aceitassem dividir quartos. Já o próprio secretário extraordinário da Casa Civil para a COP30, Valter Correa, chegou a dizer, em fevereiro, que os países deveriam “baixar as expectativas” sobre a infraestrutura do evento, e sugeriu a redução de comitivas.
No site para as acomodações em cruzeiros — Costa Diadema e MSC Seaview —, ofertadas pela organização da COP30 em parceria com a plataforma Qualitours, é possível encontrar acomodações do mesmo estilo. A cabine externa mais barata tem como descrição comportar “de 1 a 4 pessoas” e, ao mesmo tempo, ter disponível um “leito de casal ou dois leitos lado a lado”.
Procurada para comentar as críticas, a Bnetwork, que organiza a plataforma de hotéis, não respondeu. Já a Qualitours afirmou que as acomodações “mantêm exatamente a mesma configuração adotada rotineiramente pelos navios em qualquer operação de cruzeiro” e que não houve alterações para a COP. A empresa afirma ainda ter adotado uma “política comercial mais vantajosa para o público”, e o valor da diária será o mesmo independentemente do número de ocupantes da cabine.
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“Nas cabines múltiplas (triplas ou quádruplas), a acomodação pode incluir camas de casal ou solteiro lado a lado, sofás-camas ou camas suspensas recolhidas ao teto. Essa informação é sempre disponibilizada ao cliente no momento da cotação e da reserva, garantindo transparência sobre a forma de acomodação. A acomodação (single, dupla, quádrupla) é uma escolha do cliente”, acrescenta a empresa na nota.
No dia 1° de agosto, a organização da COP30 divulgou um comunicado em que afirma ter 53.003 leitos disponíveis para acomodar o público esperado de cerca de 50 mil pessoas. Do total, “a hospedagem nos navios assegura a oferta de aproximadamente 3.900 cabines com capacidade de até 6 mil leitos. Portanto, a oferta é por cabine”, informou a organização ao GLOBO.
Os improvisos vêm fazendo parte dos esforços dos governos, federal e estadual, e da Secretaria Extraordinária da COP30, para que a logística seja capaz de receber 50 mil pessoas. Além dos navios contratados para a hospedagem, há planos de conversão de escolas em alojamentos e de condomínios do Minha Casa Minha Vida em apartamentos.
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Ontem, o Observatório do Clima, maior rede de ONGs da agenda climática do Brasil, criticou, em carta aberta, o que chamou de “negligência” dos governos federal e estadual na preparação da COP30. O Observatório afirmou que há risco de ser a COP “mais excludente da história”, com a redução de delegações por causa dos altos preços de hotéis e que há risco de um “vexame histórico” para o país.
“Não foi por falta de aviso. Desde quando se ofereceu para sediar a COP30, o governo brasileiro sabe quais são as demandas logísticas da conferência”, diz a carta da rede, que citou nominalmente o ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT-BA), responsável pela logística, e o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), além do presidente Lula.
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Dispostos a evitar que Belém fique com a imagem manchada diante da crise, moradores da capital do Pará também decidiram abrir as portas de suas casas para a estadia gratuita durante a COP. O funcionário público estadual Bruno Lopes é um dos moradores que aderiram à iniciativa. Ele anunciou nas redes sociais que abrigará de graça até duas pessoas durante a conferência.
“Não é nada fácil abrir mão da minha privacidade doméstica, mas no que depender de mim a minha cidade não vai passar vergonha por conta de pessoas que pretendem enriquecer do dia para a noite dessa forma que tem sido anunciada”, diz um trecho da publicação que ele fez na sua conta do Instagram. A mensagem foi replicada por diversos amigos e, desde então, ele já recebeu, além de mensagens de apoio, contatos de sete potenciais interessados. Todos são brasileiros que vivem na Europa, pretendem participar ou trabalhar na COP30, mas estão com dificuldades de hospedagem por causa dos altos preços.
— A reputação da nossa cidade tem sido manchada por uma questão imobiliária, isso me incomoda muito. Então pensei que tenho que fazer algo do meu sofá, por menor que seja. Contribuir para que o evento ocorra, recebendo duas pessoas na minha casa e incentivando outras a fazerem o mesmo — explica Lopes. — A COP é uma grande oportunidade, uma vitrine enorme para a Amazônia e a nossa cidade.
Como mora com sua mãe e sua filha, além do cachorro Bruce, Lopes está priorizando a estadia de mulheres, mas diz que tudo pode ser conversado, e oferece até café da manhã. Sua iniciativa, inclusive, já inspirou ao menos uma amiga, que lhe mandou uma mensagem dizendo que também irá abrir as portas para hospedar visitantes necessitados, com preferência para moradores de países africanos, latino-americanos e asiáticos.
— A COP é uma grande oportunidade, uma vitrine enorme para a Amazônia e a nossa cidade. Esse bonde não vai passar novamente. Os olhos do mundo estão voltados para Belém e imaginar que pessoas podem deixar de nos visitar por causa de preços altos é patético. É inacreditável ver estadias por centenas de milhares de reais, não tem cabimento — afirma.
Amigo de trabalho de Lopes, Alex Oliva, de 36 anos, teve a mesma ideia. Ele e seu companheiro, Vinicius Laredo, vão anunciar, nas redes, uma estadia na suíte do apartamento deles.
— Fazemos isso para mostrar ao mundo que a imagem que tentam passar sobre nós, paraenses, como pessoas oportunistas, não condiz com a realidade. Somos, sim, conhecidos por nossa hospitalidade e generosidade — explicou Oliva, que vai priorizar pessoas com dificuldades financeiras.
Oliva destacou que inflações em função de grandes eventos é algo corriqueiro e, por isso, acredita que as críticas sobre a situação da COP 30 teriam nuances de preconceito regional. Ele diz que desistiu de passar o último carnaval no Rio porque estavam lhe cobrando R$23 mil somando as cinco diárias para uma estadia na Cinelândia
Apesar de admitir os excessos, Oliva afirma que o verdadeiro “espírito belenense” vai prevalecer.
— Temos o Círio de Nazaré em outubro, que recebe 2 milhões de pessoas, e o espírito é completamente diferente do que vem acontecendo na COP. Quem puder receber 10 pessoas em casa, dá um jeito. Talvez outras pessoas se sintam estimuladas a fazerem o mesmo agora.