No momento em que a queda de braço entre John Textor e seus sócios da Eagle Football Holdings em razão da crise no Lyon chegou à Justiça, uma série de documentos anexados ao processo trouxe à tona detalhes até então nunca revelados sobre a SAF do Botafogo. Na segunda das três partes* da série “Ascensão, glória e incerteza”, O GLOBO traz detalhes do contrato e mostra como o clube carioca abriu mão de algumas proteções para atender aos interesses do empresário, o que acabou permitindo que o americano pusesse a SAF alvinegra como garantia para comprar o Lyon, levando o clube ao centro do imbróglio. Um movimento polêmico, que acabou ofuscado pelo ano glorioso de 2024, com a conquista da sonhada e inédita Libertadores e do título brasileiro.

  • Parte 1 – de ex-skatista e empresário do ramo de efeitos especiais a dono da SAF do Botafogo: como John Textor assumiu futebol do clube após ser contatado pelo LinkedIn

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No meio da tarde de 7 de janeiro de 2022, uma quinta-feira, cerca de 100 torcedores do Botafogo fizeram uma festa no saguão do Aeroporto Santos Dumont para receber John Textor, que pousava no Rio para fechar a compra da SAF do clube. Dois dias depois, Textor assinou com o Botafogo uma “oferta vinculante”, primeiro movimento necessário para a transferência do controle do futebol para suas mãos. A criação da SAF foi oficializada na semana seguinte, em 15 de janeiro, quando 97% dos sócios presentes na Assembleia Geral aprovaram a venda para o americano.

Em 26 de janeiro de 2022, o empresário fez o primeiro aporte da nova SAF, de R$ 50 milhões, que lhe garantiu um período de exclusividade para verificação das finanças do clube antes da conclusão da operação. No mês seguinte, o clube social transferiu para a SAF todos os ativos relacionados às atividades do futebol, como contratos e direitos esportivos. Já em março, a compra foi sacramentada com a assinatura dos documentos que balizam a relação entre as partes e funcionam como a espinha dorsal da nova empresa: o Contrato de Investimento e o Acordo de Acionistas. De um lado, os papéis — que só vieram à tona, na íntegra, no fim de julho, quando foram anexados aos processos judiciais que contrapõem Textor e seus sócios — estabeleciam os aportes e responsabilidades do investidor; de outro, garantiam mecanismos de proteção ao Botafogo associativo diante do risco de descumprimento das obrigações.

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O Contrato de Investimento estabeleceu as regras básicas do negócio. Textor comprou 90% das ações da SAF, enquanto o clube social ficou com 10%. No documento, ele se comprometeu a investir, além dos R$ 50 milhões já aportados, outros R$ 350 milhões em quatro parcelas ao longo de 36 meses — sendo que a primeira, de R$ 100 milhões, foi paga à vista no ato da assinatura. Segundo o contrato, se o investidor não quitasse alguma das parcelas em até cinco dias após a data acordada, teria seu direito de voto dentro da SAF suspenso, e o clube social poderia criar novas ações e comprá-las, ampliando sua fatia em relação ao sócio inadimplente e reforçando a possibilidade de reassumir o comando da empresa em cenários de crise.

Outro compromisso pactuado no documento dizia respeito ao pagamento das dívidas históricas do clube social, avaliadas em R$ 900 milhões à época. O passivo não foi transferido para a SAF, mas a nova empresa assumiu a “obrigação irrevogável e incondicional” de quitar todas as pendências da associação que existiam até então. O pagamento seria feito por meio de repasses regulares, na forma de royalties devidos ao clube pelo uso da marca e de suas instalações.

Já o Acordo de Acionistas detalhava os direitos de governança, penalidades e, principalmente, as salvaguardas para a associação. Embora minoritária, a entidade garantiu, com o documento, poder de veto sobre temas considerados “Assuntos Qualificados” — como mudanças de nome, símbolos e cores do clube, reorganizações societárias, alienação de imóveis ou de direitos de marca, alterações no conselho e transformações na natureza jurídica da SAF. Sem a aprovação do clube, nenhuma dessas medidas poderia ser implementada. O acordo também estabeleceu que a participação do Botafogo associativo na SAF não poderia ser inferior a 5% das ações. Esse limite funcionava como um mecanismo de proteção para garantir que a associação mantivesse base acionária suficiente para exercer direitos de veto e fiscalização.

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O documento também criou restrições caso qualquer acionista desejasse usar suas ações como garantia em outras operações — como a tomada de empréstimos, por exemplo. Segundo o acordo, qualquer gravame sobre ações deveria ter aprovação prévia e por escrito do Conselho de Administração da SAF, formado por quatro representantes do investidor e um do associativo. Portanto, se o clube social não concordasse com a garantia, poderia vetá-la.

O capítulo de “Obrigações de Contribuição do Investidor” estabeleceu parâmetros para a atuação de Textor com o objetivo de garantir a estabilidade econômica da SAF, prevendo penalidades em caso de descumprimento. O investidor deveria assegurar que a empresa tivesse caixa suficiente para cobrir despesas operacionais e de investimento, além da folha de pagamento do futebol profissional. O acordo previa, por exemplo, que pelo menos R$ 50 milhões fossem destinados ao pagamento de jogadores entre 2023 e 2028. Textor também teria que garantir que o endividamento não ultrapassasse certos limites. A partir do quarto ano de operação, a dívida não poderia ser maior do que o dobro da receita. Em caso de descumprimento, o investidor estaria sujeito a penalidades que iam de multas à diluição de sua participação acionária.

Apesar das proteções asseguradas pelo acordo, em poucos meses o clube associativo abriu mão de algumas delas para atender interesses de John Textor — que logo penhorou a SAF do Botafogo para comprar o Lyon e formar sua rede multiclubes.

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Após a compra do Botafogo, ainda faltava a John Textor um clube tradicional em uma liga de destaque da Europa para completar o portfólio de sua rede. O escolhido para se juntar a Crystal Palace (Inglaterra), RWD Molenbeek (Bélgica) e Botafogo sob o guarda-chuva da Eagle Football Holdings — empresa aberta na Inglaterra em setembro de 2022 para centralizar a gestão dos clubes — foi o multicampeão francês Olympique de Lyon. Em situação financeira complicada, com dívidas na casa dos 500 milhões de euros à época, o clube também buscava um novo investidor para suceder o desgastado Jean-Michel Aulas, seu dono desde 1987.

Textor, no entanto, tinha um problema para concluir a compra: no fim de 2022, após adquirir com recursos próprios os demais clubes, ele não dispunha dos 800 milhões de euros pedidos pelos proprietários de 77% das ações do Lyon. Para levantar o montante, recorreu ao mercado financeiro. James Dinan e Alexander Knaster, do fundo de investimentos Iconic Sports, aportaram 75 milhões de dólares na operação. Em troca, ficaram com 15% das ações da Eagle e passaram a integrar o Conselho de Administração da holding.

O contrato assinado entre as partes previa proteções amplas para a dupla: caso a Eagle não abrisse capital na bolsa de valores, os investidores teriam o direito de exigir que Textor recomprasse as ações por 75 milhões de dólares, acrescidos de juros anuais de 11%. Se o empresário não cumprisse essa obrigação, a Iconic poderia transferir para si as ações de Textor na Eagle.

Já a Ares Management Corporation, gestora global de investimentos, emprestou 425 milhões de dólares para financiar a compra do Lyon, recebeu participação acionária na Eagle e indicou dois representantes — Mark Affolter e Jim Miller — para o conselho da holding. O efeito colateral da operação atravessou o Atlântico e chegou a General Severiano: como garantia do empréstimo, Textor ofereceu em penhor todas as suas ações na SAF do Botafogo.

Para fechar o acordo, o empresário — que havia adquirido o Botafogo como pessoa física — primeiro cedeu sua posição contratual, direitos e obrigações na SAF para a recém-constituída Eagle Football Holdings. Depois, precisou articular internamente a aprovação da penhora, já que o Acordo de Acionistas impunha barreiras ao uso das ações como garantia. O documento exigia “aprovação prévia e por escrito do Conselho de Administração da companhia”.

Em 5 de janeiro de 2023, na Assembleia Geral Extraordinária da SAF, o presidente do clube social, Durcésio Mello, renunciou formalmente às salvaguardas previstas nos artigos 7 e 8 do Acordo de Acionistas. O primeiro tratava da necessidade de aprovação do conselho para a oneração das ações. O segundo assegurava ao clube social o direito de preferência na compra das ações do sócio majoritário em caso de venda ou execução de penhor. Ao abrir mão desse direito, o Botafogo associativo perdeu a prioridade de aquisição, facilitando a transferência direta das ações a um novo titular em caso de inadimplência.

No mesmo dia da assembleia, o Conselho de Administração autorizou o uso das ações da SAF como garantia e, na semana seguinte, o contrato de penhor foi formalizado. As cláusulas que deveriam resguardar o clube em cenários de crise foram flexibilizadas para viabilizar a operação internacional de Textor, deixando a SAF do Botafogo exposta como colateral de uma dívida bilionária assumida fora do país. Ao fim do processo, John Textor concluiu a compra do Lyon e manteve-se como acionista majoritário da Eagle, com cerca de 60% do capital — mas ganhou sócios que, no futuro, seriam a causa de dores de cabeça.

Botafogo ergue a taça da Libertadores da América — Foto: Andre Moreira
Botafogo ergue a taça da Libertadores da América — Foto: Andre Moreira

A compra do Botafogo por John Textor teve impacto imediato dentro de campo. Logo em 2022, primeiro ano da SAF, houve um salto de investimento, e a equipe que havia subido da Série B em 2021 foi completamente reformulada. Ao longo da temporada, chegaram ao clube reforços de peso como o atacante Tiquinho Soares, o zagueiro Adryelson e o volante Patrick de Paula — que custou seis milhões de euros e se tornou, na época, a contratação mais cara da história do clube. Outra chegada marcante foi a do treinador português Luís Castro, escolhido a dedo por Textor pelo trabalho de reformulação nas divisões de base do Porto. O time terminou o Brasileirão na 11ª posição, manteve-se longe da briga contra o rebaixamento e assegurou a permanência na Série A, primeiro objetivo da SAF.

No segundo ano, Textor reduziu os investimentos e apostou na manutenção da base do elenco anterior, mesclada a reforços pontuais — em sua maioria, jogadores vistos como boas oportunidades de mercado, como o volante Marlon Freitas, que mais tarde se tornaria capitão da equipe. A aposta funcionou, e o time teve um início de Brasileirão mágico, superando adversários com folha salarial muito superior e chegando à metade do campeonato na liderança, com 47 pontos — o melhor primeiro turno da história do torneio.

O trabalho, no entanto, começou a desandar após uma ligação de Cristiano Ronaldo, que convenceu Luís Castro a trocar o Botafogo pelo Al Nassr, da Arábia Saudita. O treinador deixou o time após a 12ª rodada e, no segundo turno, com sucessivas trocas de comando, o desempenho desabou. Após uma sequência de 11 partidas sem vencer, o Botafogo foi ultrapassado na reta final pelo Palmeiras, que acabou campeão. Apesar da frustração, a equipe conseguiu se classificar para a Libertadores pela primeira vez em sete anos.

Cheque de campeão da Libertadores — Foto: Vitor Silva
Cheque de campeão da Libertadores — Foto: Vitor Silva

Após ver o título escapar, Textor resolveu abrir o cofre no ano seguinte. Em 2024, foram 21 contratações e mais de R$ 400 milhões investidos no elenco. O meia Thiago Almada e o atacante Luiz Henrique, que chegaram ao longo da temporada, se tornaram as duas contratações mais caras da história do futebol brasileiro. Para comandar o time, Textor escolheu o português Artur Jorge, que havia levado o modesto Braga ao título da Taça da Liga de Portugal, eliminando o tradicional Sporting na semifinal.

O investimento trouxe retorno imediato: as principais contratações logo se firmaram no time titular e se destacaram entre os melhores jogadores do país — Luiz Henrique e Igor Jesus, outro dos reforços, passaram a ser convocados para a seleção brasileira. Ao fim do ano, o Botafogo conquistou dois títulos em apenas 13 dias: em 30 de novembro, venceu o Atlético Mineiro por 3 a 1 em Buenos Aires e levantou a taça da Libertadores pela primeira vez em sua história; em 8 de dezembro, derrotou o São Paulo por 2 a 1 no Nilton Santos e foi campeão brasileiro pela terceira vez, encerrando um jejum de 29 anos. Após as conquistas, a torcida exibiu uma faixa em homenagem a Textor: “Obrigado por revolucionar nossa história”.

John Textor em partida do time francês Lyon — Foto: AFP
John Textor em partida do time francês Lyon — Foto: AFP

Na França, entretanto, o empresário não repetiu a trajetória de sucesso. Seus problemas começaram apenas seis meses após a compra do Lyon: em maio de 2023, Jean-Michel Aulas, antigo dono que seria mantido como presidente executivo do grupo por mais três anos, deixou o clube. Nos meses seguintes, o motivo do rompimento veio à tona. Em entrevista a diversos veículos franceses, Textor acusou Aulas de ter “escondido” dados sobre a situação financeira do Lyon na época da venda. Depois, a empresa de Aulas anunciou, em comunicado, que entraria com “várias ações legais para preservar seus direitos diante das repetidas violações de John Textor e da Eagle Football”. Em agosto, o ex-dono conseguiu, pela via judicial, congelar 14,5 milhões de euros de fundos do Lyon, referentes à sua parte na venda do clube.

Dentro de campo, os resultados foram medíocres. Na temporada 2023/2024, o time teve o pior início de campeonato de sua história na primeira divisão francesa, permanecendo na zona de rebaixamento até a 16ª rodada. Após a chegada do treinador Pierre Sage, no entanto, houve reação: foram 15 vitórias nos últimos 20 jogos, e o Lyon terminou na sexta colocação, garantindo vaga na Liga Europa, segundo torneio continental em importância, abaixo da Champions League.

Na temporada seguinte, o clube gastou 134 milhões de euros (R$ 827 milhões) em oito reforços — entre eles, o zagueiro Niakhaté, que se tornou a contratação mais cara da história do Lyon após o pagamento de 32 milhões de euros (R$ 197 milhões) ao Nottingham Forest. Com esse investimento, Textor esperava garantir a classificação para a Champions League, competição que poderia aliviar as finanças do clube com suas altas premiações. O time, no entanto, terminou novamente em sexto lugar, assegurando apenas vaga na Liga Europa.

A partir de 2024, para tentar injetar recursos, Textor passou a vender ativos do clube. Em fevereiro, negociou por mais de 60 milhões de euros uma fatia do time feminino do Lyon para a empresária sul-coreana Michelle Kang — que se tornou sua sócia e integrante do Conselho de Administração da Eagle. Em junho, vendeu as ações da empresa OL Vallée Arena, responsável pela arena multiuso do clube, por mais de 50 milhões de euros.

John Textor recebe camisa do Lyon do presidente do clube Jean-Michel Aulas — Foto: Olivier Chassignole
John Textor recebe camisa do Lyon do presidente do clube Jean-Michel Aulas — Foto: Olivier Chassignole

Paralelamente, o empresário recorreu ao clube mais rentável de sua rede, o Botafogo, para socorrer o Lyon. Valores de sócio-torcedor, patrocínios e premiações da conquista da Libertadores e da participação no Mundial de Clubes foram direcionados à França. Até jogadores do alvinegro — como Luiz Henrique, Igor Jesus e Jair — foram negociados exclusivamente para que adiantamentos de pagamentos cobrissem os déficits do Lyon. Segundo levantamento da SAF, apenas entre janeiro e junho de 2025 mais de R$ 500 milhões foram transferidos pelo Botafogo ao clube francês.

A estratégia, no entanto, não convenceu o órgão de controle da liga, a Direção Nacional de Controle e Gestão (DNCG). Em novembro, a entidade proibiu o Lyon de contratar na janela de transferências do meio da temporada. Já em 24 de junho passado, a DNCG comunicou que o clube seria rebaixado para a segunda divisão por não apresentar garantias financeiras. Dias depois do anúncio, Textor renunciou ao comando

Após o afastamento do americano, o Lyon recorreu e conseguiu reverter a queda. Michelle Kang — que sucedeu Textor à frente do clube — e os demais sócios da Eagle precisaram injetar 100 milhões de euros imediatamente e apresentar mais 100 milhões em garantias para as obrigações da temporada seguinte. Na janela mais recente, o clube mudou radicalmente sua política: vendeu mais do que comprou e arrecadou 105 milhões de euros com transferências de jogadores.

No início da temporada, o jogo entre Lyon e Metz precisou ser interrompido por cânticos ofensivos da torcida contra Textor. “John Textor é o vigarista de um sistema sem salvaguardas. Não à multipropriedade”, dizia uma faixa exibida nas arquibancadas.

* A terceira e última parte da série “Ascensão, glória e incerteza – os bastidores da SAF do Botafogo” vai ao ar nesta sexta-feira e destrinchará os conflitos entre John Textor e os sócios da Eagle Football Holdings na Justiça e o que isso pode impactar no futuro do alvinegro.

como Botafogo abriu mão de proteções e foi usado por Textor como garantia para compra do Lyon