Com apenas oito meses de operação em 317 cidades no Rio Grande do Sul, após arrematar a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), em dezembro de 2022, a Aegea teve que enfrentar a maior inundação da história do estado. Foram 67 cidades de sua área de concessão que ficaram debaixo d’água ao mesmo tempo, lembra Édison Carlos, presidente do Instituto Aegea:
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— Houve três fenômenos climáticos ao mesmo tempo. Havia uma frente fria subindo, uma grande massa de ar quente que impedia que a frente fria avançasse e uma grande migração de umidade da Amazônia que turbinou o sistema todo. Um fenômeno tão extremo como nunca tínhamos imaginado. Não tinha estrada, não tinha ponte. Tivemos que alugar 140 caminhões-pipa para distribuir água para as pessoas.
Nas grandes redes de distribuição de água, árvores inteiras entraram na tubulação, obrigando a Aegea a contratar mergulhadores para retirar os resíduos e permitir que a água voltasse às casas. Carlos diz que mesmo com essa inundação sem precedentes, a empresa trabalha para alcançar 99% de residências com água encanada e 90% de esgoto recolhido e tratado até 2033, como determina o Marco Legal do Saneamento, aprovado em 2020, sem atrasos.
Os extremos climáticos que também afetaram o abastecimento de água em Manaus, com seca histórica no ano passado, outra região de concessão da Aegea, podem sim, na opinião do economista Claudio Frischtak, da Inter.B Consultoria Internacional, especializada em infraestrutura, atrasar o cronograma. Ele diz que tem havido resposta forte de investimento das operadoras desde a aprovação do Marco Legal, mas as mudanças climáticas aumentam a complexidade tanto para o investimento em ampliação do sistema como na operação:
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— Existe um estresse hídrico crescente. Os recursos de água doce estão mal distribuídos, aumentou a sazonalidade, e a provisão do serviço ficou mais complexa. Outra dimensão é que os serviços de saneamento são grandes consumidores de energia. Cerca de 2% da carga do país é resultado da demanda desses serviços. E as mudanças climáticas também afetam a provisão de energia elétrica.
Os extremos climáticos aumentaram o custo da expansão, já que é preciso também modernizar a rede e universalizar o serviço. As redes no Brasil são antigas, datam dos anos 1970 e 1980 e precisam agora ser recuperadas.
— Não estamos fazendo investimentos suficientes para universalizar em 2033, acho que conseguiremos em 2040, o que já será um grande ganho para o país — avalia Frischtak.
Débora Pierini Longo, diretora de Operação e Manutenção da Sabesp, que foi privatizada em julho do ano passado, espera alcançar as metas do Marco Legal antes do prazo, em 2029, nos 375 municípios onde atua.
Com a experiência que trouxe da seca de 2014 e 2015, em São Paulo, a pior em mais de 60 anos, a Sabesp já tem os sistemas dos reservatórios integrados para permitir que, quando não houver vazão suficiente numa bacia, a água de outro sistema possa ser usada para abastecimento em outra região. Agora, estão desenvolvendo um projeto-piloto para integração de previsões meteorológicas e histórico hidrológico com o objetivo de monitorar o nível dos mananciais.
— A Sabesp tem grandes reservatórios de água na região metropolitana (são 22 milhões de clientes) e estamos usando inteligência artificial para cruzar 70 anos de dados pluviométricos com os de vazão dos mananciais. Se muda o volume pluviométrico, o algoritmo refaz as projeções e cria alertas — explica Débora.
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Os relatórios começam a ser entregues em julho, com boletins diários.
Marilene Ramos, diretora de Relações Institucionais e Sustentabilidade do Grupo Águas do Brasil, holding que reúne operadoras de mais de 30 municípios nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, afirma que as mudanças climáticas afetam o abastecimento de água, com as secas, enquanto as enchentes e inundações destroem a infraestrutura hídrica:
— Hoje, a palavra de ordem para o setor de saneamento é adaptação, infraestrutura resiliente. Nós temos que nos preparar para garantir a segurança hídrica e ter capacidade de coletar e tratar o esgoto mesmo com essas questões.
Marilene cita como exemplo o que aconteceu no mês passado com o Rio Macacu, responsável pelo abastecimento de parte de Niterói, que caiu a um nível similar ao de setembro e outubro, no auge da seca:
— Isso aconteceu em pleno verão, na estação chuvosa. Do nosso lado, nós estamos trabalhando para reduzir as perdas. Temos um nível de perdas inaceitável, parte da água retirada dos mananciais é perdida nos sistemas ou usada de forma irregular.
Christianne Dias, diretora-executiva da Associação das Operadoras Privadas de Saneamento (Abcon/Sindcon), ressalta que o saneamento básico tem “papel fundamental na preservação ambiental e na segurança hídrica”, ao reduzir a contaminação dos rios e os impactos de secas.
—Cabe ressaltar que a falta de acesso à água potável e saneamento adequado aumenta a vulnerabilidade das comunidades a eventos climáticos extremos — afirma.
Segundo a associação, 92% das concessionárias privadas têm procedimentos para medir ou minimizar as emissões de gases de efeito estufa.
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O ministro das Cidades, Jader Filho, está otimista, com base nos investimentos do setor público e privado, de que será possível alcançar a universalização em 2033:
— Por parte do governo, há contratos para abastecimento de água, esgotamento sanitário e macrodrenagem de R$ 60 bilhões, fechados em 2023 e 2024. Nos entes federados, são contratos que somam R$ 20 bilhões.
Jader Filho chama a atenção para uma mudança importante na formatação dos leilões de saneamentos — estão previstos este ano os do Pará, em 11 de abril, de Rondônia e Pernambuco — que é o aumento do uso de debênture incentivada (títulos de dívida sem Imposto de Renda) no mercado no pagamento da outorga (direito de explorar um recurso ou serviço), de 50% para 70%:
— Isso permitiu que fosse possível fazer o leilão de Sergipe (em setembro do ano passado, arrematado pela Iguá Saneamento).
Alexandre Boaretto, diretor de Operações da Rio+Saneamento, que opera em 18 municípios do Estado do Rio de Janeiro, incluindo 24 bairros da capital e é uma das concessionárias da Águas do Brasil, diz que tem atuado para reduzir as perdas. A meta do Marco Legal é chegar a um percentual máximo de 25% na operação:
— Ao reduzir o volume de perdas, a concessionária potencializa o impacto positivo de suas ações ambientais, preserva os mananciais para seus usos múltiplos à população, promove qualidade de vida e a sustentabilidade do negócio.
Segundo a concessionária, foram investidos mais de R$ 160 milhões em ações de combate a perdas.
Uso de recursos de fundos internacionais voltados para reduzir os efeitos das mudanças climáticas, monitoramento contínuo dos contratos de concessão e reequilíbrio financeiro em casos como o do Rio Grande do Sul são os mecanismos que empresas e governos citam como alternativas para fazer frente aos investimentos necessários para tornar o sistema mais resistente aos extremos climáticos.
Marilene Ramos, diretora de Relações Institucionais e Sustentabilidade do Grupo Águas do Brasil, diz que uma empresa sozinha não vai dar conta do desafio imposto pela crise climática. somente a tarifa não é capaz de custear o investimento que precisa ser feito :
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— É preciso que cada vez mais, você junte o setor público e o privado. É não é só o estado, o município, vão ser necessários bilhões para adaptação. A tendência é que ocorra o mesmo que está se passando no setor elétrico. As empresas estão em discussão com a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), para avaliar como fazer frente a essa demanda de investimento, de preferência sem impactar a tarifa. Temos que buscar outras fontes.
Marilena lembra que há recursos disponíveis no mundo para essa adaptação, principalmente de países ricos que são responsáveis por parcela expressiva das emissões que provocam o aquecimento global.
Édison Carlos, presidente do Instituto Aegea, diz que o passado não serve mais como única referência. As empresas de saneamento precisam trabalhar com “plano A, plano B, plano C, para fazer a população sofrer o menos possível”. A análise de custos e capital a ser investido ficou mais complexa.
— Tem de prever nos futuros contratos, principalmente em áreas sabidamente sujeitas aos efeitos climáticos. Tem de considerar a capacidade de pagamento da população. Esse fator é determinante para o investimento — diz.
Nos contratos em vigor, pode-se conseguir algum reequilíbrio, com aumento do prazo de concessão, alguma coisa na tarifa, mas há limites, na avaliação das próprias concessionárias.
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A discussão tem que unir agência reguladora, Ministério Público, prefeituras, câmara de vereadores, concessionárias e acontecer “o tempo todo”, diz Carlos.
O ministro das Cidades, Jader Filho, afirma que a questão dos contratos é da alçada das agências reguladores, mas que não há registro de repactuação dos contratos:
— É preciso analisar o caso concreto, com todos os contratos respeitados.
O assunto divide os especialistas. O economista Claudio Frischtak diz que o reequilíbrio financeiro de contrato de concessão por mudanças climáticas só se justifica se houver um choque de tal ordem que paralise o sistema, danifique os equipamentos, como no caso do Rio Grande do Sul. Enquanto o debate for centrado na questão de investimentos necessários para a prevenção, ele avalia que as empresas provavelmente terão de encontrar outras soluções.