Estudo feito por um consórcio contratado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES) já alertava para a fragilidade nos dados usados na formulação do edital de concessão do saneamento do Rio. Apontavam que os números sobre a coleta e o tratamento de esgoto, apresentados pela Cedae no documento, estavam superdimensionados.
- Saneamento: Ministério Público do Rio abre inquérito para investigar acordo milionário entre Cedae e Águas do Rio
- Concessão: TCE-RJ suspende acordo que levaria Cedae a pagar R$ 900 milhões à Águas do Rio
Anexado ao edital, o relatório destacava que as informações do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), do Ministério das Cidades, base para estimar a cobertura de água e esgoto nos municípios, eram autodeclaradas e sem verificação independente — o que poderia gerar distorções significativas nos cálculos de atendimento.
“Vale destacar que os dados do Snis devem ser avaliados com cautela, tendo em vista que são autodeclarados, não havendo uma fiscalização ou conferência a respeito dos mesmos e, com isso, o preenchimento pode ocorrer de forma equivocada. Além disso, o preenchimento do Snis pela Cedae retrata apenas a realidade da sua área de abrangência, o que resulta em um déficit de informações para as demais localidades do município, não atendidas por ela. Essa colocação é fundamentada, pois é notória a baixa participação das prefeituras, geralmente responsáveis pelos sistemas dessas localidades, no preenchimento dos dados no SNIS” — diz o relatório.
Para o consultor ambiental Luiz Renato Vergara, um dos responsáveis pelo estudo, o problema atual poderia ter sido evitado se o governo tivesse adotado uma margem de variação maior para as divergências de dados entre o edital e a realidade de campo:
— O estado, no edital, limitou a responsabilidade das concessionárias a uma variação de até 18,5% dos dados. Se tivesse considerado 35% ou 40%, que era algo mais factível, especialmente nos dados de esgoto, que eram os mais frágeis, não estaríamos enfrentando tantos problemas agora.
Segundo ele, em alguns municípios, a discrepância chegou a ser muito superior ao limite previsto no contrato. As mesmas mesmas inconsistências foram identificadas em todos os blocos.
— O estado optou por um percentual muito baixo, e aí surgiram variações muito altas. Em Caxias, o edital indicava 42% de coleta e tratamento de esgoto, mas o real não chega nem a 10% — afirmou Vergara, lembrando que as empresas tinham conhecimento do estudo, já que foi publicado junto com o edital.
As disputas envolvendo contratos de saneamento no estado se ampliaram. Além da Águas do Rio (blocos 1 e 4), as concessionárias Rio+Saneamento (bloco 3) e Iguá (bloco 2) também pedem reequilíbrio econômico-financeiro e contestam os dados de cobertura de esgoto apresentados pela Cedae no edital de concessão dos seus serviços. Juntas, as três empresas reivindicam R$ 2,7 bilhões em compensações — valor que equivale a mais da metade da dívida pública a ser paga este ano pelo estado à União (R$ 4,9 bilhões). E a mais de 10% da outorga arrecadada com os quatro lotes concedidos (R$ 24,8 bilhões).
Em meio à ofensiva das concessionárias, o Ministério Público do Rio (MPRJ) abriu ontem inquérito civil para apurar uma possível lesão ao erário no acordo celebrado em 3 de outubro entre o governo do estado, a Cedae e a Águas do Rio, que previa compensação de R$ 900 milhões à concessionária por meio de descontos na água vendida pela estatal. Foram encaminhados ofícios solicitando aos envolvidos esclarecimentos e o envio de documentos. O Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ), por sua vez, já havia questionado e suspenso o acordo.
As reclamações das concessionárias citam contratos baseados em números incorretos sobre a sobre a coleta e o tratamento de esgoto — o que, segundo as empresas, alteraria as condições financeiras previstas originalmente. Nos documentos enviados à Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa) apontam divergências nos índices de atendimento e inconsistências no cadastro técnico dos sistemas herdados da Cedae. Baseiam os pedidos na cláusula contratual que prevê reequilíbrio financeiro quando há variação superior a 18,5% entre os dados de cobertura informados no edital e os constatados em campo.
Estado, Cedae e Agenersa reconheceram a dívida de R$ 900 milhões com a Águas do Rio. A Iguá alega um desequilíbrio de R$ 1,5 bilhão, e a Rio+Saneamento, de R$ 325 milhões.
A Rio+Saneamento argumenta que as diferenças entre Índice de Atendimento Urbano de Esgoto (IAE) previsto e real “tornam inalcançáveis as metas anuais de IAE a partir do terceiro ano da concessão, o que pode gerar penalidades indevidas”. Já a Iguá diz que a imprecisão dos dados iniciais aumenta os investimentos necessários e reduz as receitas previstas. E que a situação seria ainda mais crítica em Miguel Pereira e Paty do Alferes, onde nenhum cadastro técnico dos sistemas de água e esgoto teria sido disponibilizado.
Um parecer técnico da Subsecretaria de Concessões e Parcerias do estado, reconheceu que a Cedae é responsável pelos prejuízos alegados pela Águas do Rio. O documento foi enviado à Agenersa e embasou parte da decisão do TCE-RJ de suspender o acordo.
Sobre o inquérito do MPRJ, o governo do estado e a Cedae dizem que ainda não foi notificada, mas que estão está à disposição para prestar os esclarecimentos solicitados.
Em nota, o BNDES afirma que os estudos que apoiaram o estado na concessão do saneamento se basearam em dados oficiais divulgados pelos municípios, disponíveis no Snis e analisados em conjunto com dados fornecidos pela Cedae.