Na infância, morando numa fazenda do Vale do Paraíba, João Carlos Gomes conheceu um costume: quem chegava em casa olhava a geladeira, via o que tinha à disposição, juntava tudo numa panela e fazia um “mangundi”. Ou seja, uma mistura.
— Nos dias de hoje, estamos precisando muito de mangundi. De mistura de raças, mistura de imigrantes, mistura de sons. E o Brasil é um pote de misturas. A gente trouxe o jazz para cá, inventou a bossa nova, tem uma história de misturas — diz o percussionista.
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Na música, seu nome é João Parahyba. O apelido deriva de sua família, que era dona da fábrica Cobertores Parahyba. É um dos fundadores do Trio Mocotó, que, entre outras coisas, tocou com Jorge Ben (ainda sem o Jor) em três discos marcantes: “Jorge Ben” (1969), “Força bruta” (1970) e “Negro é lindo” (1971). Na carreira solo, ele dá mais um passo agora, aos 75 anos, com o instrumental “Mangundi”, que chega às plataformas no dia 31 e, em breve, sairá em vinil.
— Eu estava parado, não sabia mais o que seria da minha carreira de solista, quando um DJ, o EB (Eduardo Barreto), que tem o selo Vitrine, ligou para mim e disse: “João, tenho umas ideias aqui e queria saber o que você acha”. Mostrei umas 20, 30 músicas em que eu tinha usado tecnologia, loop, escolhemos algumas, e ele falou: “Vamos arranjar isso, fazer um LP” — relata.
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O saxofonista Jota P. Barbosa, que tocava com Hermeto Pascoal, se envolveu tanto com o projeto que foi creditado como parceiro em seis das oito composições. Outra é só de João e há uma de Alex Malheiros, do Azymuth. Vários músicos participaram das gravações.
— Tem uma música chamada “Bolo de fubá”. Todo mundo botou um pouco de tempero e saiu um bolo de fubá. Não é mineiro, não é carioca, não é paulista, é brasileiro. Por isso, o mangundi.
Embora diga que não criou nada, João é um inovador. Começou a tocar na noite de São Paulo quando o estilo vigoroso de alguns bateristas do samba-jazz, como Edison Machado, era considerado barulhento. Desmembrou uma bateria e pôs no centro uma timba, um tantã tocado entre as pernas e, no caso dele, com escovinha. Virou a “timbateria”.
— Eu não criei a timbateria. Vocês (da imprensa) criaram. Não tenho estilo, tenho música. A minha igreja é a música. Sou o pastor da alegria e da boa energia — afirma ele, que chegou a ser malvisto por bateristas, incomodados com o fato de a timbateria tirar trabalho deles. — No fundo, todo baterista é um percussionista. Bateria é um módulo de percussão feito para não precisar ter vários percussionistas.
Aos 16 anos, João já era profissional. Para tristeza da família abastada, começara a sair com amigos para fazer música. Recebia aulas de bateria de Rubinho, do Zimbo Trio. Conquistou a simpatia do dono da famosa casa noturna Jogral, Luiz Carlos Paraná, que só tinha um percussionista contratado, Fritz Escovão, craque na cuíca.
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Em 1967, chegou o pandeirista Nereu Gargalo. Nascia o Trio Mocotó, mas ainda sem este nome. Jorge Ben, com o seu violão, passou a tocar com eles em suas idas a São Paulo, e o encontro marcaria as duas partes, engendrando o samba-rock.
— A gente tocava um samba para frente, um samba nervoso, como era o violão do Jorge — conceitua João.
Em 1969, Jorge e o trio participaram do Festival Internacional da Canção com “Charles Anjo 45”.
— O Augusto Marzagão (criador do FIC) perguntou antes de a gente entrar no palco: “É Jorge Ben Trio?”. Aí nós e o Jorge falamos: “Põe Trio Mocotó.” Era uma gíria carioca. A gente brincava com as moças que entravam na boate: “Olha o mocotó dessa menina!” — conta João, explicando que a expressão se referia, principalmente, às pernas femininas.
No FIC de 1970, eles estiveram no palco do Maracanãzinho, ao lado de Erlon Chaves e da Banda Veneno, em “Eu também quero mocotó”, de Jorge. Foi um escândalo: mulheres mostrando as nádegas e outras, brancas, beijando o negro Erlon, que saiu do palco preso — afinal, era a ditadura.
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Em 1971, o trio lançou um disco próprio, o que contribuiria para o fim da parceria com Jorge, pois os compromissos começaram a se chocar. João, Nereu e Fritz também tocaram nos dois primeiros LPs de Toquinho e Vinicius e num de Chico Buarque, “Construção” (1971), na faixa “Samba de Orly”.
Não se sabe se Jorge confirma hoje em dia, mas à época João ganhou dele o apelido Comanche, que o cantor entoa em várias gravações.
— Eu era riponga, usava uma bandana que nem o (Carlos) Santana e torcia para os índios nos filmes. Ele falava: “Toca aí, Comanche!” — recorda o percussionista.
O mercado ficou ruim, e o trio suspendeu as atividades em 1975. Só voltou em 2000, participando do CD “Tanto tempo”, de Bebel Gilberto, e novamente fazendo apresentações. Em 2001, lançaram “Samba rock”.
— Os DJs relançaram a gente. Fomos para a Europa, fizemos muitos shows. Nos Estados Unidos, toquei com DJs. Passei a ter a linguagem dos DJs — conta João, que acredita ainda existir preconceito de músicos contra DJs. — DJ é um arranjador musical. Em vez de usar instrumentos, usa discos. E eu respeito isso. Mas a gente ainda tem a poeira do século passado. Há os caretas, que não param para ouvir. Por isso, é importante o mangundi, porque tem os caras fechados nas suas casinhas. A gente precisa abrir um pouco a cabeça das pessoas. A linguagem é outra hoje, é muito mais rápida. Não pode ser disco instrumental, acústico, de terno e gravatinha borboleta. Você tem recursos para fazer boa música eletrônica, reprocessada ou o que a gente quiser.
João diz ter muito mais músicas para gravar. E conta que o Mocotó planeja fazer um álbum em 2026. O trio é formado agora por ele, Nereu e Melvin Santhana. Já morreram Fritz e aquele que o substituiu, Skowa. Com seu filho Janja Gomes, João ainda tem a Comanche Groove’s Band.