Bem-vindos ao mais recente boom do xisto no cenário mundial. Após uma década de falsas partidas, Vaca Muerta finalmente decola, impulsionada pelo experimento de livre mercado do presidente Javier Milei. O mandatário libertário quer transformar a Argentina em um grande produtor de petróleo e mudar uma economia historicamente sustentada na agricultura.
É um projeto existencial para todos os envolvidos: se Milei conseguir gerar nova riqueza petrolífera, poderá tirar o país da crise econômica de décadas e convencer os eleitores a continuarem apoiando sua visão.
Seu maior desafio será o tempo. Vaca Muerta ganha impulso justamente quando os preços do petróleo oscilam entre as mínimas dos últimos anos, deixando a Argentina em suspense quanto ao ritmo da produção.
E se o projeto não der frutos antes de Milei se candidatar à reeleição em 2027, é possível que os eleitores, cansados da austeridade, se voltem contra ele, colocando em risco o investimento estrangeiro necessário para aproveitar plenamente os recursos do país.
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Vaca Muerta “está florescendo em um momento extremamente significativo para Milei, que precisa urgentemente de vitórias econômicas que mostrem aos eleitores que todos os sacrifícios do último ano e meio valeram a pena”, afirmou Benjamin Gedan, pesquisador da Iniciativa de Estudos Latino-Americanos da Universidade Johns Hopkins:
— E ele também pode ser o eixo do próximo capítulo.
Todos os ingredientes para o sucesso estão presentes.
Como a tampa de um frasco que se abre de repente depois que outros já haviam afrouxado o lacre, Vaca Muerta já estava prestes a explodir quando Milei assumiu o cargo. Além de contar com o apoio dos três governos anteriores, a formação rochosa, localizada a três quilômetros de profundidade, é considerada por geólogos tão boa — ou até melhor — que a do Permiano, a maior e mais prolífica formação de xisto do mundo.
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Isso ajudou as empresas de perfuração a reduzir seus custos de equilíbrio para níveis abaixo dos de seus concorrentes americanos, segundo a Rystad Energy.
Milei concedeu isenções fiscais de 30 anos ao setor
Para acelerar o boom, Milei só precisou remover os obstáculos: eliminou praticamente todos os limites de preços do petróleo; flexibilizou os controles cambiais, que vinham sendo especialmente prejudiciais para grandes companhias como a Chevron; e concedeu isenções fiscais à prova de bala por 30 anos para os investidores do setor de energia.
Em um ano desde sua chegada ao poder, a produção diária de petróleo em Vaca Muerta aumentou 28% e, em abril, atingiu 442 mil barris. A previsão é que, nos próximos cinco anos, supere 1 milhão de barris diários — tanto quanto alguns membros da Opep, cartel que reúne os maiores exportadores de petróleo do mundo — e que a maior parte seja destinada à exportação.
Mas o aumento coincide com um período de volatilidade no mercado. Antes de Israel lançar ataques aéreos contra o Irã em 13 de junho — o que fez os preços subirem — o Brent, referência global, era negociado em seu nível mais baixo em quatro anos, chegando a tocar os US$ 60. O mercado registrou uma breve alta à medida que as tensões geopolíticas se intensificaram, mas depois voltou a cair.
Os preços nos últimos meses foram suficientemente baixos para que os produtores de xisto nos Estados Unidos começassem a reduzir os gastos, o que levou analistas a alertarem sobre uma queda incomum na produção entre os principais países produtores de petróleo do mundo.
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As empresas argentinas dedicadas ao xisto, por outro lado, mantiveram seus investimentos. A maior delas, a estatal YPF, insiste que suas operações podem resistir mesmo se o preço cair para US$ 45. A segunda, Vista Energy, declarou que só revisará seu plano anual se os preços atingirem US$ 55. Já a Pampa Energía, uma produtora menor, estima que seu bloco de petróleo de xisto mais emblemático pode alcançar o ponto de equilíbrio com preços abaixo de US$ 40.
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Isso pode parecer curioso, dado que Vaca Muerta não conta com as economias de escala de que dispõem os operadores do Permiano, onde a concorrência entre uma grande quantidade de empresas de serviços e fornecedores contribui para a redução dos custos. No entanto, agora que as melhores áreas do Permiano já foram exploradas, os poços de xisto nos EUA estão se tornando mais caros.
Enquanto isso, os perfuradores argentinos ainda podem escolher os melhores reservatórios. Eles também têm fácil acesso à água doce e à areia necessárias para fraturar a rocha, um processo conhecido como fracking.
— As coisas podem ser aprimoradas — disse Alexis Martínez, supervisor de perfuração, durante uma visita recente a uma plataforma.
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Como a maioria dos trabalhadores do setor petrolífero na Argentina, Martínez — de 48 anos, corredor de ultramaratonas e de olhos azuis intensos — foi transferido para Vaca Muerta após anos de trabalho em jazidas convencionais, onde havia pouco espaço para inovação.
— Como tudo era muito padronizado, era difícil romper com esse padrão. Aqui, a gente está sempre pensando no que pode melhorar, buscando mais — observou.
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‘Em Neuquén, quem não progride é porque não quer’
Em Neuquén, cujo nome vem de uma palavra indígena que significa algo como “audaz”, a aposta no xisto parece estar dando frutos. A população da província cresceu rapidamente junto com a produção de petróleo, aumentando 32% e chegando a 727 mil habitantes entre 2010 e 2022, segundo o último censo argentino. Isso é mais do que o dobro da taxa nacional, já que milhares de pessoas chegam à região em busca de uma parte da lendária riqueza.
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Nicolás Almará, de 37 anos, é um deles. Chegou há uma década como fotógrafo de um jornal local e hoje lidera uma equipe em uma empresa de serviços de perfuração. Trabalha em turnos de duas semanas na boca do poço e acredita que poderá economizar o suficiente para se aposentar aos 50 anos.
— Em Neuquén, quem não progride é porque não quer — afirma.
O arquiteto Pablo Arpajou também acredita nessa mobilidade ascendente. Sua incorporadora imobiliária, Safiar, está projetando torres residenciais na capital da província para uma nova geração de trabalhadores do setor petrolífero.
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Mas em Añelo, uma localidade empoeirada aos pés do deserto de xisto, os inconvenientes do boom já começam a se tornar evidentes, destacando os desafios de longo prazo que Javier Milei enfrentará, mesmo que o desenvolvimento do xisto continue a prosperar.
Aqui, a população quintuplicou, chegando a aproximadamente 11 mil habitantes desde que o primeiro poço de xisto foi perfurado, por volta de 2011. Os novos blocos de moradias para trabalhadores do setor petrolífero ocupam praticamente cada centímetro livre de terreno.
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Marcelo Venegas, vereador do município, comenta que até oito famílias chegam a Añelo toda semana em busca de emprego. Aproximadamente metade se instala em construções precárias na nova expansão da cidade de Neuquén, enquanto outros permanecem em Añelo, dormindo ao relento na praça, no cemitério ou no posto de serviço da YPF.
— O que acontece é que há uma ideia errada de que vão chegar aqui, descer do veículo em que vieram, e que alguém vai pegá-los e levá-los direto para trabalhar — explica Venegas, que chegou a Añelo ainda criança, há cerca de 45 anos, durante outro boom ligado à perfuração de gás natural.
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Venegas sabe melhor do que ninguém que o sonho do petróleo pode se tornar realidade: seu pai, que era garçom, abriu sua própria cafeteria, e ele mesmo conseguiu ganhar o suficiente como trabalhador do setor para economizar e investir em imóveis.
Mas também se lembra de como comunidades petrolíferas como Cutral Co e Catriel, a poucos quilômetros da fronteira provincial, se tornaram cidades fantasmas quando a YPF foi privatizada no início da década de 1990 e o negócio entrou em declínio:
— Não queremos que isso se repita aqui. Ainda mais levando em conta que o fenômeno Vaca Muerta é muito mais explosivo.
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Matías Weissel, diretor de operações da Vista, de 39 anos, também se lembra de tempos mais incertos. Quando era um jovem engenheiro na YPF, há 13 anos, ainda recorda a consternação que sentiu ao ver o vice-ministro da Economia da Argentina invadir a torre envidraçada da empresa em Buenos Aires e telefonar para a presidente para informá-la de que o governo havia retomado o controle da YPF.
Houve críticas de que o vice-ministro administrou mal alguns aspectos da nacionalização, o que levou um tribunal de Nova York a decidir, uma década depois, que a endividada Argentina deve pagar cerca de US$ 16 bilhões a antigos acionistas.
Javier Milei herdou essa ação judicial problemática, e a situação chegou a um ponto crítico nesta semana, quando o tribunal ordenou que o Estado transferisse suas ações na empresa, enquanto os demandantes tentam confiscar ativos soberanos para receber o valor. A Argentina está recorrendo do caso como um todo, assim como da ordem emitida nesta semana.
Na Patagônia, como no Texas
Mas em 2012, a YPF tinha liberdade, sob controle estatal, para explorar o potencial de Vaca Muerta, e destinou Weissel para sua nova equipe de xisto. No início, o pequeno grupo se sentia como um bando de excluídos: primeiro, foram instalados em escritórios dentro de um antigo campo de gás e, depois, em alguns trailers em uma área conhecida como Loma Campana.
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Não estava claro — para dizer o mínimo — se o xisto funcionaria na Patagônia como funcionava no Texas, na época o único lugar onde o fraturamento hidráulico (fracking) era realmente viável. No entanto, os esforços da YPF em parceria com a Chevron em Loma Campana, para entender o recurso e aplicar o conhecimento sobre xisto vindo dos Estados Unidos, demonstraram a produtividade da rocha e abriram caminho para a chegada de mais perfuradoras.
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A indústria cambaleou mais tarde durante o governo do presidente Mauricio Macri, cujos esforços para liberalizar a economia argentina fracassaram em 2018 e 2019. Matías Weissel testemunhou como os investidores, que inicialmente estavam eufóricos com Macri, recuaram diante dos enormes déficits orçamentários de seu governo e lhe viraram as costas.
Isso provocou a evaporação do financiamento para um importante gasoduto de gás de xisto, e as repercussões inflacionárias da queda do peso obrigaram a reimposição dos temidos controles sobre os preços do petróleo.
Esses riscos “no terreno”, como os petroleiros gostam de chamar, ainda persistem. Enquanto investidores globais voltam a olhar para a Argentina e comemoram o foco de Javier Milei em gerar superávits fiscais, muitos aguardam o resultado das eleições legislativas de outubro como um sinal mais claro de que os eleitores estão dispostos a dar uma chance prolongada ao seu experimento de livre mercado. Outros, no entanto, estão desinvestindo enquanto as condições ainda são favoráveis.
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Por ora, a popularidade de Javier Milei permanece firme, já que muitos argentinos, apesar de enfrentarem uma austeridade sem precedentes, começam a ver lampejos da “luz no fim do túnel” que o presidente prometeu no dia de sua posse, há 18 meses.
A pobreza e a inflação estão nos níveis mais baixos em vários anos; os cidadãos, finalmente, já não enfrentam restrições para trocar suas economias entre pesos e dólares; e espera-se que a economia cresça 5% este ano, após ter se contraído em 2023 e 2024.
Com metade dos argentinos mantendo uma imagem positiva de Milei, o presidente lidera com folga em popularidade todos os seus concorrentes de esquerda e de direita, segundo uma pesquisa recente da AtlasIntel feita para a Bloomberg News.
Divisas vão ajudar a ainda frágil política cambial
Supondo que Milei tenha um bom desempenho nas eleições legislativas, “ele conta com uma base fiscal muito mais sólida que Macri para demonstrar aos investidores que pode chegar com estabilidade até 2027”, afirmou Jimena Zúñiga, analista da Bloomberg Economics para a América Latina, em Buenos Aires.
No entanto, ela alertou que a frágil política cambial de Milei representa um fator de risco.
Vaca Muerta está desempenhando um papel crucial para mitigar esse risco. Com a recente conclusão de uma importante ampliação do oleoduto em direção à costa atlântica, as autoridades federais projetam um superávit comercial energético de US$ 8 bilhões para este ano, superando o recorde de 2024 que pôs fim a anos de déficits estruturais paralisantes.
Petróleo pode ganhar peso similar ao da agricultura
Os perfuradores já demonstraram que podem ser competitivos exportando Medanito, o petróleo leve de Vaca Muerta comparável ao Brent, passando pelo extremo sul da América do Sul rumo aos EUA — seu principal cliente estrangeiro até agora, após as vendas por oleoduto ao vizinho Chile. Entre os novos marcos estão envios de teste para a Índia e a Austrália.
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Muito em breve, muitos desses barris serão transportados do deserto até o mar por meio de um novo oleoduto de 567 quilômetros e um terminal portuário exclusivo, como parte de um projeto chamado Vaca Muerta Sul, financiado por um empréstimo de um consórcio de bancos internacionais. É o tipo de linha de crédito que teria sido impensável antes do governo de Javier Milei.
— Este não é um projeto qualquer — afirma Manuel Castillo, um refugiado venezuelano encarregado de supervisionar a construção, abrigado do vento entre fileiras de tubos de aço negro empilhados. — O impacto disso é transformar a Argentina em uma potência exportadora.
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Na verdade, os produtores de petróleo insistem que estão a caminho de igualar os US$ 30 bilhões que os agricultores — tradicional pilar da economia argentina — exportam a cada ano.
Daniel González, responsável pela área de energia no governo de Javier Milei, afirmou recentemente que o boom do comércio de petróleo e gás representa uma “mudança de paradigma” que “muda a vida da Argentina”.
Matías Weissel também se mostra otimista:
— Vejo como muito difícil que isso deixe de acontecer agora.