Toda a força e beleza das cantigas e rezas de axé como arma contra a intolerância religiosa. Usar a música como aliada no combate a preconceitos é um dos objetivos de “Orin Dudu”. O projeto, cujo nome em iorubá significa cânticos negros, cumpre a função de realizar registro fonográfico da memória oral de sete terreiros de raízes distintas do candomblé do Rio de Janeiro: Ilê Omiojúàrò, em Nova Iguaçu; Ilê Axé Oba Nixa Oroco, em Bento Ribeiro; Ilê axé Opo Afonjá, em Coelho Neto; Bate Folha, em Anchieta; Nação Ijexá e Bangbala, em Belford Roxo; e Ilê Axé Egi Omim, em Santa Teresa.
- Ialorixá Wanda d’Omolú: ‘O mundo precisa tirar o mofo’
- Ana Beatriz Nogueira: ‘Tenho mais medo da intolerância do que da esclerose múltipla’, diz atriz
Esse ouro está reunido em dois discos a serem lançados pela Biscoito Fino. Um deles traz seleção das cantigas gravadas in loco, do jeito que são executadas nos espaços. O material têm imenso valor histórico por registrar cantos e rezas específicas de cada nação — não são cantigas necessariamente cantadas na sala de candomblé para o público presente.
O outro, álbum de estúdio a ser lançado em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, apresenta as músicas interpretadas por iniciados na religião de matriz africana com arranjos musicais contemporâneos, participação de instrumentistas renomados como Carlos Malta, Silvério Pontes, Eduardo Neves, entre outros, e dobradinha dos arranjadores e compositores Kiko Horta e Luís Filipe de Lima na direção musical e produção.
— Diante do racismo religioso, colocar na roda a beleza das nossas “pretinhosidades” colabora para que entendam quem somos nós para além dos muros, das roupas e colares, do estereótipo que criaram. Essas casas guardam a memória do nosso povo, fico feliz em salvaguardá-la — afirma a ialorixá Wanda d’Omulú, ponta de lança do Ilê Axé Egi Omim, que capitaneou o projeto.
Faz sete anos que Wanda, jornalista e educadora social, transferiu seu axé da Ilha de Guaratiba para Santa Teresa. Em meio da mata tropical, onde antes funcionava um centro budista, ela firmou seu ponto. Cercado por um imenso bambuzal, ele existe em harmonia com a fauna e flora da Floresta da Tijuca. Com a experiência de quem orienta o batuque pela “dinâmica preta da educação” nesse quilombo urbano, Wanda afirma:
— O Rio é uma das cidades onde mais acontecem aberrações como quebrar terreiros. Muita gente não pode usar seus fios de conta, não pode lavar e pendurar suas roupas brancas no varal em territórios onde moram pessoas que não aceitam a diversidade religiosa, que professam uma só fé. Lançar um disco de axé permite ouvir nossos atabaques dentro de casa.
- Bembé do Mercado. Artista do Recôncavo Baiano abre mostra no maior candomblé de rua do mundo
Wanda lembra que o sonho de realizar as gravações começou em 2011. Em 2017, após pesquisas, o trabalho de campo foi iniciado. Em mais de 20 horas de gravação, há depoimentos dos líderes religiosos das sete casas, mais de uma centena de cantigas de orixás, junto com registro fotográfico das entrevistas feito por Cristiane Cotrim com figuras seminais desses terreiros. Algumas já cantaram para subir. Ou, como se diz no axé, se “ancestralizaram”. São mulheres como Mãe Beata, que concede uma de suas últimas entrevistas, e Mãe Margarida de Oxum, filha de Mãe Menininha do Gantois.
— Gravamos com elas com simplicidade, respeito e responsabilidade. No meio delas, me senti um grão de areia. Pensava no quanto terei que caminhar para chegar onde essas senhoras chegaram — diz Wanda, de 67 anos, primeira ialorixá de sua dinastia. — Fiquei feliz e reflexiva, entendendo o tamanho da minha responsabilidade enquanto ialorixá mais nova.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/4/b/sjAI6NS9GMictzzLmmOw/wanda.jpg)
O músico Kiko Horta, ebôomi de Oxaguiã do Ilê Axé Egi Omim, iniciado por Wanda, lembra a gênese da ideia:
— Lembro da minha mãe (Wanda) me dizendo: “Você precisava ouvir como sua avó de santo (Mãe Zezé de Obaluaê) cantava”. Então, o neto dela nasceu, outras crianças foram chegando no axé e pensei: que registro teremos para as futuras gerações, dessa e de outras casas, das vozes desses mais velhos daqui 50 anos? Vão poder ouvir a voz desses ancestrais, saber o jeito que essas antigas eram entoadas? — recorda Kiko.
Agora, vão. E o registro dessa memória e legado é cercado de saborosa riqueza de detalhes. Para a faixa da Nação Gantois, registrada na voz de Mãe Margarida de Oxum (filha de santo mais antiga de Mãe Menininha no Rio e falecida após a conclusão das gravações), foi usada como referência uma gravação de Mãe Menininha cantando a mesma cantiga de Oxossi. O registro, da década de 1940, foi realizado pelo antropólogo negro americano Lorenzo Turner.
— Era a gravação mais antiga dessa cantiga de que tínhamos notícia. Havia determinados melismas vocais que ela fazia e foram se modificando com o tempo. Tentamos fazer a junção da forma como ela cantava e como cantam hoje. No caso do ijexá para Oxum cantado por Pai Zezito (o mais antigo representante da Nação Ijexá no Rio), é como se a gente tivesse trazido a orquestra para tocar com ele no terreiro. Essas são vozes trabalhadas no tempo com sonoridades características. É uma memória viva que segue perpetuando numa sociedade em que a intolerância religiosa cresce — lamenta Kiko. Kiko.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/G/H/akRyAFRsm6du9JgpzcXQ/kiko.jpg)
Luís Filipe de Lima, ebômi de Oxaguiã do Ilê Axé Oxalufã Oxum Oyá, ressalta a importância da documentação:
—É um trabalho fundamental de preservação da tradição. Hoje, vemos gente cantando cantigas de candomblé no Tik Tok, Instagram, Youtube. Estamos procurando mapear o pessoal antigo. A maneira de cantar as mesmas cantigas tem diferença nas letras e melodias dependendo da casa. É uma cultura oral, que vira telefone sem fio. O desafio é saber o que é diversidade, que tem a ver com a origem das manifestações na África, e que se multiplicaram ainda mais em diversidade no Brasil, e o que é aberração.
Segundo Luís, a partir do aprendizado e registro desses mais velhos pode-se estabelecer um padrão.
— Não que seja preciso fazer como fazem, mas é importantes reconhecer e poder consultar. Com “Orin Dudu”, a gente coloca mais um tijolinho nessa edificação importante de preservar o saber tradicional das religiões de matriz africana.
Todas as cantigas em seu formato original trazem apenas um trio de atabaques acompanhando a voz.
O desafio para os arranjadores foi fazer uma criação musical em cima desse formato sem que a cantiga perdesse a força da reza que traz com ela. A faixa de abertura, por exemplo, conta com arranjo moderno de três trompetes.
— Tomamos cuidado para não descaracterizar a original. E a reza soa como se sentíssemos Oxossi chegando na sala — brinca Kiko. — Uma faixa difícil de ser gravada foi a da Wanda, a reza para Omolu. Ela vinha de uma chikungunya e avisou: “Só vou conseguir cantar uma vez”. Assim foi. De primeira. Porque reza e partido alto não se repete, tem que ser na hora.
Para Luís Filipe, o maior encantamento no universo de músicas de candomblé são as melodias modais. Ele explica:
– No candomblé ketu e jeje, as melodias tonais são misteriosas e sedutoras. São escalas diferentes da música ocidental que, normalmente, é tonal. Essa melodia modal está no blues, na música negra americana. Mal comparando, é um pouco a onda da música mineira, de Milton Nascimento, Toninho Horta, Wagner Tiso. Há pontos de contato, e é um território não tão familiar a quem está habitado a ouvir outras coisas – afirma Luís.
Sobre a experiência de fazer arranjos para músicas de candomblé como base de outras composições, ele lembra outras referências:
– Estamos numa trilha que vem, pelo menos, desde os anos 1990 com Paul Simon. Arto Lindsay também já fez, o grupo Metá, Metá, André Abujamra, Grupo Ofá, Inaicyra Falcão, Orkestra Rumpilezz.
O mergulho na intimidade das casas de axé só foi possível por ter sido realizado por pessoas com “idade de santo”, que leva em conta o tempo de dedicação à religião e rituais de passagem. Tinham as manhas de perceber o delicado equilíbrio entre o que mostrar e o que resguardar — inclusive, durante as entrevistas, conduzidas com a participação do do filho de Mãe Beata, o babalorixá Adailton Moreira. Era preciso estabelecer uma confiança que só os de dentro conseguiriam.
— Existe grande liberdade criativa, mas de maneira respeitosa. Vale mais a pena quando a gente, que é do candomblé, entende do lado de dentro, os vários significados e estramos em contato com os mais profundos. Na hora de escrever um arranjo, essas associações pintam numa conexão direta — diz Luís Felipe.
A importância desse trabalho de registro da herança e parte significativa da memória trazida a partir da diáspora negra, que arrancou milhões de africanos para as Américas e desmantelou culturas de diversos povos em diferentes partes do continente africano, ganha tintas ainda mais fortes se lembramos de uma coisa, diz Wanda:
— Que os processos de transmissão de conhecimento necessários à espiritualidade e para a manutenção de uma memória viva e são dados através da oralidade e da corporalidade. A famílias afrodescendentes guardam sua gênese no canto, na dança, no gesto, na fala, na comida, na vestimenta e nas tranças dos cabelos. Entendo o terreiro de candomblé como lugar privilegiado para o encontro destes saberes; é o espaço-tempo guardião da memória e a “porta de retorno” existencial e espiritual — define. — Com inspiração na formulação clássica de W.E.D. Du Bois sobre “dupla consciência”, me parece que nós, afrodescendentes, vivemos em dois mundos. Por um lado, estamos inseridos na cultura ocidental e na modernidade desde a escravidão. Por outro lado, seguimos vivendo, simultaneamente, a partir de um referencial da cultura dos mais velhos; portadores de heranças nãoocidentais, ou mesmo além-ocidentais.

