A República Democrática do Congo (RDC) está mantendo “discussões diárias” com o governo dos Estados Unidos na intenção de garantir um acordo de exploração de minerais críticos em troca de apoio militar, disseram autoridades congolesas. Nos últimos meses, esse país da África Oriental rico em recursos tornou-se palco de uma disputa atroz entre as forças de segurança do Estado e grupos rebeldes liderados pelo M23, uma milícia apoiada por Ruanda, aumentando os temores de uma guerra regional mais ampla. Mais de 7 mil pessoas foram mortas e outras milhares deslocadas, de acordo com o governo.
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Embora os detalhes da proposta oficial para um acordo com os EUA não sejam conhecidos até o momento, observadores dizem que a RDC foi inspirada pela oferta de Washington de continuar apoiando a Ucrânia em sua guerra contra a Rússia em troca de um acordo sobre exploração de terras raras. Esse acordo, que ainda está em discussão, prevê a entrega de 50% da receita de minerais do país para desfrutar de um “compromisso financeiro de longo prazo com o desenvolvimento de uma Ucrânia estável e economicamente próspera” por parte dos EUA.
A proposta congolesa foi posta sobre a mesa em 8 de fevereiro, quando o presidente Félix Tshisekedi enviou uma carta para o líder americano, Donald Trump, oferecendo oportunidades de mineração para o Fundo Soberano dos EUA, uma entidade lançada pela Casa Branca alguns dias antes.
“Sua eleição inaugurou a era de ouro para a América”, escreveu Tshisekedi na carta, citada pelo Wall Street Journal. “Nossa parceria daria aos EUA uma vantagem estratégica ao garantir minerais essenciais como cobalto, lítio, cobre e tântalo da República Democrática do Congo.”
Em troca, Tshisekedi pediu a Trump um “pacto formal de segurança” para ajudar seu Exército a derrotar o M23, que recentemente derrotou soldados congoleses, tropas das Nações Unidas e mercenários privados e tomou cidades-chave no leste da RDC, região rica em minerais.
De acordo com a agência de notícias Reuters, Andre Wameso, vice-chefe de Gabinete de Tshisekedi foi a Washington no início deste mês para discutir uma possível “parceria” com as autoridades americanas, nos moldes da proposta feita a Kiev.
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Na semana retrasada, as autoridades dos EUA indicaram que estavam prontas para considerar essas propostas, mas não responderam diretamente.
“Os Estados Unidos estão abertos a discutir parcerias nesse setor que estejam alinhadas com a Agenda America First do governo Trump”, disse um porta-voz do Departamento de Estado à Reuters, observando que a República Democrática do Congo detinha “uma parcela significativa dos minerais críticos do mundo necessários para tecnologias avançadas” e que os EUA gostariam de aumentar o investimento do setor privado na RDC “de forma responsável e transparente”.
A República Democrática do Congo é um grande produtor de estanho, tungstênio, tântalo e ouro. Esses minerais, conhecidos coletivamente como 3TG, são usados na produção de eletrônicos, equipamentos de defesa, veículos elétricos e outras tecnologias. O tântalo em particular, extraído do coltan, e o cobalto são componentes críticos de smartphones e laptops. Estima-se que os recursos naturais inexplorados da RDC valham cerca de US$ 24 trilhões, segundo as Nações Unidas.
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Nem a carta do presidente Tshisekedi, nem as autoridades congolesas ou americanas divulgaram detalhes sobre o que o acordo proposto pela RDC implicaria, tão pouco especificaram que tipo de apoio militar os congoleses querem dos EUA.
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O M23 é o mais recente de uma série de grupos rebeldes apoiados por Kigali que têm disputado território e valiosos recursos naturais no leste da RDC há mais de 30 anos. O pano de fundo dessa história remete ao episódio que ficou conhecido como genocídio de Ruanda, em 1994, durante o qual extremistas étnicos hutus mataram cerca de um milhão de tutsis étnicos minoritários e hutus moderados no território ruandês.
Durante e após o genocídio, quase dois milhões de refugiados hutus cruzaram a fronteira congolesa, a maioria se estabelecendo em campos de refugiados nas províncias de Kivu do Norte e Kivu do Sul. Uma pequena parcela desses ruandeses que entraram na RDC eram extremistas hutus que começaram a organizar milícias dentro da República Democrática do Congo. A pressão se intensificou quando as milícias tutsis se coordenaram contra os grupos hutus e quando potências estrangeiras passaram a tomar partido.
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Ruanda nega fornecer apoio militar ao M23, cujos membros são predominantemente tutsis, e diz que seu único interesse é proteger suas próprias fronteiras e parentes étnicos da perseguição na RDC. Mas um relatório de especialistas da ONU relatou em dezembro que o presidente Paul Kagame, no poder há 25 anos, mantém cerca 4 mil soldados no lesta da RDS para apoiar o grupo armado. Além disso, informou que Ruanda recebeu 150 toneladas de tântalo contrabandeado de uma mina congolesa controlada pelo M23.
Os combates entre as forças de segurança congolesas e os grupos rebeldes liderados pelo M23 escalaram rapidamente em janeiro e, com o reforço militar fornecido por Ruanda, as milícias capturaram duas grandes cidades, Goma e Bukavu, numa ação relâmpago. Segundo relatório do Centro para Ação Preventiva do Council on Foreign Relations (CFR), baseado em Washington, a escalada em Goma exacerbou a violência política nacional — inclusive na capital, Kinshasa — que aumentou após as eleições nacionais de dezembro de 2023 na RDC
“Com um milhão de congoleses buscando refúgio no exterior e vinte e um milhões de pessoas no país precisando de assistência médica, alimentar e de outra natureza urgente, a RDC representa uma das maiores e mais mortais crises humanitárias do mundo”, afirma o relatório, publicado em fevereiro.
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Na noite de quarta-feira da semana passada, o M23 também assumiu o controle do centro de mineração de Walikale, segundo fontes locais. A tomada da cidade de cerca de 60 mil habitantes marca o avanço mais a oeste do grupo armado para o interior da RDC desde que surgiu em 2012. A ofensiva ocorreu logo Tshisekedi e Kagame terem mantido conversas não divulgadas em Doha na véspera, expressando seu apoio a um cessar-fogo após tentativas anteriores de diálogo terem fracassado no último minuto.
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Ao vir à mesa em Doha, “Kagame está implicitamente reconhecendo seu papel na rebelião no leste”, disse à AFP Thierry Vircoulon, pesquisador associado do Centro da África Subsaariana do Instituto Francês de Relações Internacionais. O M23, no entanto, “não tem agenda de negociação”, afirmou.
— Eles não têm exigências. O objetivo deles é tirar Tshisekedi do poder — acrescentou, Vircoulon.
A ofensiva já havia feito com que o grupo de mineração Alphamin retirasse seus funcionários neste mês e interrompesse as operações na terceira mina de estanho mais produtiva do mundo. A interrupção da mineração elevou os preços do estanho, enquanto aumentam as preocupações com a cadeia de suprimentos do valioso metal usado para soldar componentes eletrônicos em placas de circuito eletrônico.
Negociações de paz estavam previstas para terça-feira passada em Luanda, mas foram canceladas. Menos de uma semana depois, nesta segunda-feira, Angola anunciou que, após três anos, se retiraria de seu papel de mediadora no conflito no leste da RDC para se concentrar em sua presidência da União Africana (UA), assumida em caráter rotativo há dois meses.
“Angola reconhece a necessidade de se libertar da responsabilidade de mediar esse conflito (…) a fim de se concentrar de forma mais abrangente nas prioridades gerais estabelecidas pela organização continental”, disse a Presidência em um comunicado, acrescentando que seriam tomadas as “medidas necessárias” com a Comissão da UA para “encontrar o país cujo chefe de Estado deve assumir a mediação”, e que “Angola sempre acreditou na necessidade de negociações diretas entre o governo da RDC e o M23.”
A República Democrática do Congo, assim como a Ucrânia, precisa de parceiros para ajudá-la a vencer o conflito armado. O país passou por duas guerras entre 1996 e 2003, além da disputa atual com o M23, e suas Forças Armadas são sucateadas devido à corrupção governamental, segundo analistas.
Na segunda-feira, o ministro da Defesa da RDC iniciou uma visita de quatro dias à África do Sul com o objetivo de fortalecer as “capacidades estratégicas de defesa” entre os dois países. Tropas sul-africanas destacadas em uma missão da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) para restaurar a paz e a segurança na região sofreram graves perdas no conflito com o M23.
Após as mortes, surgiu uma polêmica entre o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, e seu colega ruandês, com Paul Kagame tuitando que as tropas sul-africanas “não eram uma força de manutenção da paz”, mas estavam “engajadas em operações de combate ofensivas para ajudar o governo da RDC”. Em meados de março, a SADC anunciou que encerraria seu destacamento militar na República Democrática do Congo, cuja maior parte das tropas vem da África do Sul.
As Nações Unidas implantaram uma missão de estabilização na RDC em julho de 2010, mas sua presença tem sido inconsistente e controversa, de acordo com o CFR. Entre 2022 e 2023, uma série de protestos locais contra a presença das forças da Monusco se tornaram violentos, exacerbando o sentimento anti-intervenção entre o público e autoridades locais que viam as forças de paz como ineficazes.
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Um processo de desligamento da Monusco está em curso atualmente após pedidos do presidente Tshisekedi. Mas a crise no Congo não é apenas de segurança, é também humanitária.
Em janeiro, mesmo antes do M23 apoiado por Ruanda tomar Goma e Bukavu, e antes do colapso de grande parte do sistema de entrega de ajuda humanitária, menos de 13% dos 11 milhões de pessoas necessitadas na RDC estavam recebendo assistência. Agora, a espiral descendente para civis está se acelerando”, escreveu Michelle Gavin, pesquisadora sênior para estudos de política da África no CFR.
De acordo com o Comitê Internacional de Resgate, está em curso uma “deterioração catastrófica no serviço de saúde e nas condições humanitárias” no leste da República Democrática do Congo, incluindo um aumento alarmante na cólera, pois os congoleses desesperados se encontram sem saneamento básico.
Vários países europeus e os EUA impuseram sanções a importantes autoridades ruandesas nas últimas semanas, alegando estarem ligadas à violência atual no leste da RDC, e pediram ao governo de Kagame que retirasse o apoio militar.
A União Europeia, que desde de fevereiro de 2024 possui um acordo com Kigale para fornecer minerais 3TG, também está considerando cancelar esse contrato. Ruanda atualmente fornece cerca de 30% do tântalo do mundo.