É só deslizar a tela, dar dois ou três cliques, ajustar o enquadramento — e voilà: mais uma imagem é lançada ao mar revolto das redes sociais. Por trás desse gesto quase trivial nos dias de hoje, repetido aos milhões, existe a lógica poderosa e silenciosa da busca por visibilidade. No esforço para transformar momentos em conteúdo, muitos ultrapassam os próprios limites, o que às vezes pode ter consequências fatais. De mergulhos em penhascos a escaladas em desfiladeiros, o gesto aparentemente inofensivo de tirar uma foto ou gravar um vídeo pode se transformar em tragédia quando o clique vale mais do que o cuidado.
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A busca pela foto perfeita já se traduz em estatísticas alarmantes. Um estudo publicado no Journal of Travel Medicine analisou 292 incidentes envolvendo tentativas de selfies entre 2008 e 2021. Foram 379 mortes, em média de jovens de até 24 anos — 37% das vítimas eram turistas. O número de casos saltou de três, em 2013, para 68 em 2019, antes de cair no primeiro ano da pandemia, e logo voltar a subir. Metade das ocorrências foi causada por quedas de grandes alturas, seguida por acidentes de transporte e afogamentos. Entre os países com mais registros, a Índia lidera o ranking (26%), seguida dos Estados Unidos (10%) e da Rússia (9%). O Brasil também aparece na lista, com 4,5% das mortes no período.
Um caso recente ilustra o perigo que esses números representam. Em setembro, um montanhista de 31 anos morreu ao cair de cerca de 200 metros durante uma escalada no Monte Nama, na província de Sichuan, na China. O acidente ocorreu quando ele tentava tirar uma selfie próximo a uma fenda em uma área nevada, perdeu o equilíbrio e deslizou pela encosta gelada. O vídeo, registrado por companheiros de expedição, viralizou nas redes sociais, reforçando como a busca por engajamento pode ser fatal.
Em outro episódio emblemático, em agosto de 2023, o escalador francês Remi Lucidi, de 30 anos, conhecido por subir edifícios ao redor do mundo, morreu ao cair do 68º andar de um arranha-céu em Hong Kong. Lucidi, que documentava suas escaladas em vídeos e fotos num perfil com dezenas de milhares de seguidores, mostrava a cidade vista de cima, mas sem qualquer aparato de segurança ou temor.
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Especialistas descrevem esse fenômeno como uma “cultura do risco digital”, resultado da pressão por engajamento e da lógica das plataformas, que costumam recompensar o perigo. Em redes estruturadas para valorizar o que chama mais atenção, conteúdos extremos têm mais chance de alcançar grandes audiências. Na prática, o algoritmo premia quem ultrapassa limites, transformando comportamentos perigosos em espetáculo. Assim, a ousadia ganha valor de mercado, e o risco, muitas vezes, se converte em moeda — na forma de likes, engajamento, publicidade e patrocínio.
Para o antropólogo David Nemer, professor da Universidade da Virgínia, esse comportamento está enraizado na forma como as próprias redes foram projetadas.
— Essas plataformas foram feitas para isso, e embora não criem o desejo de se arriscar, oferecem um palco, com audiência e recompensa — explica ao GLOBO. — Vivemos numa era em que a visibilidade virou valor.
Segundo Nemer, a lógica da exposição ultrapassa fronteiras culturais e se repete em diferentes contextos sociais. Em cenários marcados por desigualdade, principalmente, o risco se transforma em performance e relevância, e termina instrumentalizado como um “capital simbólico”, afirma ele.
Na mesma linha, o psiquiatra Arthur Danila, coordenador do Programa de Mudança de Hábito e Estilo de Vida do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, aponta que esse modelo alastrado pelo mundo se traduz em decisões impulsivas e perigosas:
— Primeiro eu posto, depois eu sou. A atenção gerada pelos likes e comentários muitas vezes passa a valer mais do que a própria vida. As pessoas ficam reféns do que engaja mais, e isso aguça comportamentos arriscados. A rapidez, a instantaneidade e a necessidade de ser visto fazem com que riscos sejam subestimados ou ignorados.
Ele afirma que o efeito está presente em todas as faixas etárias, mas se manifesta com intensidade em jovens que ainda estão construindo identidade e senso crítico.
— Independentemente de viver ou não das redes sociais, você acaba moldado pelo que o algoritmo entrega. A vida digital se sobrepõe à realidade, e o empobrecimento dessa vitrine artificial pode levar a escolhas fatais.
Mas o risco não é, por definição, um inimigo. Há quem faça dele parte da rotina e um meio de vida. Montanhista profissional e guia certificada, Gisely Ferraz, de 48 anos, transformou a paixão pelas trilhas em conteúdo — e também em fonte de renda, com o patrocínio de marcas. Para ela, o perigo é algo que se enfrenta com preparo, não com impulsividade.
— A montanha sempre vai ter risco, mas ele precisa ser calculado. O que vejo nas redes é muita gente sem experiência tentando reproduzir situações de alta complexidade técnica — afirma. — Falta noção de limite, e às vezes até de respeito ao lugar.
Com mais de duas décadas de experiência em escaladas e expedições, ela diz que o avanço das redes sociais mudou o comportamento de muitos praticantes. Locais antes reservados passaram a ser procurados apenas pelo “registro perfeito”, e o uso de equipamentos de segurança foi, em alguns casos, substituído pela pressa de postar.
— Já vi gente tirando capacete, soltando a corda, porque ‘estraga a foto’. É bizarro. E o problema é que isso viraliza. Quem vê pensa que é simples, que também consegue. É um efeito em cadeia: a exposição vira meta, e o risco, referência.
Luciana Nunes, fundadora do Instituto Psicoinfo, dedicado a estudar o ambiente digital, acredita que essa diferenciação entre amadores e profissionais é preponderante.
— No alpinismo profissional, por exemplo, há treino, protocolos, equipe e sistemas de segurança. No amadorismo, falta tudo isso, e as redes escondem essa diferença.
Ela lembra que, na internet, “todo mundo tem acesso a tudo” e, com isso, falta profissionalismo. Além disso, aponta que as políticas públicas estão defasadas: é preciso combinar campanhas educativas, sinalização em locais de risco e limites físicos, para conter práticas perigosas que nascem da busca por engajamento.
— As pessoas tendem a colocar todo o peso da responsabilidade no indivíduo, mas é também responsabilidade coletiva: das plataformas, das marcas e das autoridades. — Sem ações coordenadas, o amadorismo continuará ocupando o lugar do profissionalismo.

